O lugar do acontecimento é o acontecimento do lugar
Lugares são coisas que acontecem porque os acontecimentos são acontecimentos de lugares
Em Heidegger and Sartre: an essay on Being and Place, de Joseph Fell, foi inaugurada, segundo Jeff Malpas, a linha do pensamento do Lugar (mantenho a maiúscula porque é assim que Fell escreve, na maior parte do tempo, quando explica e usa o conceito de “Place”). Segundo Fell, em minha livre tradução, o conceito heideggeriano de Lichtung, clareira, “significa ao mesmo tempo o lugar originário e o acontecimento originário. É o lugar do acontecimento e o acontecimento do lugar”. De modo muito grosso, o conceito de Lugar designa um âmbito que a metafísica sempre mascarou ao pensar que a verdade, a realidade e o sentido está em outro lugar, mais ou menos como está a vida naquele romance de Kundera. A metafísica busca longe o que sempre esteve perto, no horizonte próprio da nossa experiência mais comum e ordinária. Dessa perspectiva, o pensamento filosófico não começa nos céus inteligíveis dos quais se depreende, por razões suficientes, a explicação do que é e de como é o que é. Ele sempre começa circunstanciado, localizado, situado, em lugares concretos — lugares, portanto, bem diferentes do platônico Mundo das Ideias, que de certo modo não está em lugar nenhum. Lugar, nesse sentido, não se confunde com o espaço físico da física. Lugar inclui espaço e tempo, porque o Lugar é o Acontecimento da própria abertura na qual os entes se manifestam em alguma sintonia específica com a compreensão que temos deles. Fell e Malpas, entusiastas do Lugar, não cessam de se ver obrigados a lembrar em seus textos, o tempo inteiro, que Lugar não é só espaço, mas inclui tempo. Lugar é o (Acontecimento da abertura para compreensão dos entes que se manifestam) que instaura espaço e tempo. Tomando minhas liberdades narrativistas, penso que o pensamento do Lugar aponta para uma possibilidade de enredamento entre cenários e histórias, em sólidas relações internas nas quais um elemento não se dá sem o outro. Nossas histórias foram as histórias que foram porque aconteceram nos lugares em que aconteceram.
Uma das coisas mais intimamente constitutivas da minha formação em filosofia foi a conversa. Na sala de aula, o modo de exposição dos conteúdos não é uma conversa senão naquele sentido muito especial do termo que encanta pensadores tão distintos e distantes quanto Gadamer e Wright Mills. Por meu próprio temperamento, sempre gostei da aula estritamente expositiva porque nunca me faltou lugar para a conversa. Tive a sorte de conviver com obsessivos e maníacos que, como eu, sabiam perfeitamente estragar uma festa por meio de alguma conversa que qualquer outra pessoa consideraria fora de lugar. Quase sem melindres ou constrangimentos, sempre me mostrei capaz de (embora nem sempre exatamente disposto) a entabular uma conversa sobre Nietzsche, Sartre ou Schopenhauer mesmo que isso precisasse ser feito aos gritos, sob a música alta de uma boate, sob o perfume do cigarro e o sabor da cerveja barata. No início daquilo que foi de certo modo (o início da) minha melhor fase de imersão na mania obsessiva de confundir vida e filosofia, a saber, o início do meu doutorado, essas conversas tinham um cenário específico: o Café Cristal, na Alberto Pasqualini, no centro de Santa Maria.
Pequeno e quase sempre lotado, o lugar era o point da Galera da Finitude. Ali por 2014, quando me tornei um frequentador assíduo — o que durou mais ou menos até o fim de 2016 —, reuni gente que convivia na tradição de falar de filosofia com amigos. Éramos um bando de doutorandos, doutores, mestrandos, mestres, graduados e graduandos que, de modo muito romântico, sentia que a vida se enredava na filosofia. Tudo aquilo que a gente ia descobrindo e aprendendo em aulas expositivas no campus da UFSM, 10km distante do centro da cidade no qual ficava o Cristal, era comentado, comparado, partilhado nas mesas do bar — e na frente dele, para a qual íamos várias vezes em cada visita ordinária, porque quase todo mundo da Galera da Finitude era (ou continua sendo) fumante. As descobertas filosóficas se misturavam com as narrativas de nossos risíveis amores e com nossas considerações sobre a política do país, essa metanarrativa que nos enreda sob o gênero da crise há mais ou menos dez anos. Acho que não exagero nada em dizer que tudo o que pensávamos e tudo no que íamos decidindo acreditar era fortemente circunstanciado pela partilha do que era experimentado e pensado por cada um de nós. Sob o testemunho dos proprietários e funcionários do Cristal, fomos nos formando com, para e contra os outros, em uma formação que não teria sido a mesma em outras circunstâncias. As mesas do Cristal foram lugar de formação de opiniões, crenças, desejos, talvez até de valores. Certamente foi lugar de formação de vínculos que, a despeito do afastamento espacial dos personagens, permaneceram vivos e operativos nas vidas que viveram a passagem por esse lugar como acontecimento.
Ontem, ao que parece, o Cristal fechou as portas. Essas portas já não eram as mesmas, vale dizer, já que o Cristal tinha se mudado da Alberto Pasqualini. Cheguei a ir duas ou três vezes no outro ponto, sendo uma delas para “validar o diploma” de doutorado, que retirei na UFSM no final de 2021. Nada mais justo, dado o tamanho da importância daquele lugar neste acontecimento da minha vida. Há anos, aliás, carrego um botton do Cristal na minha mochila da UFSM. O Cristal não é o primeiro e certamente não será o último lugar que, na minha vida, terá fechado as portas sem deixar de acontecer. Lugares não são só localizações espaciais, mas cenários de espaço vivo e tempo humano que carregamos conosco em um tempo bem mais profundo e originário do que o da mera cronologia. Na perspectiva da mera cronologia, os lugares se formam e desformam como nuvens passageiras que com o vento se vão, como cristais bonitos que se quebram quando caem. Em uma perspectiva menos estreita e restritiva, porém, os lugares permanecem vivos porque a despeito de que jamais possamos voltar espacialmente para eles, tudo se passa como se, de certo modo, jamais os tivéssemos deixado.