No início de março, a comunidade filosófica brasileira ficou sabendo que o tópico mais pesquisado em trabalhos finais de pós-graduação no Brasil entre 1991 e 2021 é Heidegger. Embora essa informação tenha surgido já envolvida em outras polêmicas (das quais não falarei aqui), um amigo, em uma rede social, compartilhou essa informação com a seguinte alegação:
“Por isso tem tenta gente triste na filosofia.”
Confesso que fiquei surpreso, embora não muito, com essa alegação. Repliquei dizendo que “(não) ironicamente o velho do balde proporcionou para muitas pessoas (🙋🏻♂️) o acesso aos humores de maravilhamento e gratidão pelo simples fato metafísico de que o ente é, sendo no fundo bem menos ‘dark’ do que muitos dos seus intérpretes y críticos”. Não houve nenhuma diatribe entre o amigo e eu. Dias antes, rolava na mesma rede social uma alegação de que Nietzsche era o dark Spinoza e Marx era o dark Hegel. Entrei na onda e sugeri que Sartre era o dark Heidegger. Em um primeiro momento, imagino, essa alegação deve parecer um acinte, em especial se levamos em conta o plano político, nos quais estes autores estariam, digamos assim, em um sentido muito especial da expressão, em lados opostos da Grande Marcha da História. Todavia, para tentar suavizar essa barbaridade, recorro ao texto sempre delicioso de Gerd Bornheim:
“Heidegger tem sem dúvida razão: a filosofia não se repete, ela é histórica em todas suas páginas; o mito do indivíduo vem perdendo sua áurea, o individualismo se faz cruelmente vacilante, e o otimismo mínimo permite avançar um vislumbre de clareira em possíveis horizontes vasculhados por Heidegger. Acontece que, no entrevero, Sartre dá alento às suas razões: o que há de mais atual do que aquela dicotomia sujeito-objeto? A ela conduz tudo o que a antecede, sem ela nada se entende do mundo de hoje, nem se percebe muito bem em que ela possa ser transcendida. O vigor de Heidegger concentra-se por inteiro neste ponto: onde sua verdade, toda suspensa no que virá? Mas até lá, sobram os dissabores sartrianos [...]. Sartre não deixa de ter suas razões.”
Bornheim está dizendo, me parece, mais ou menos a mesma coisa que ouvi de um palestrante há algumas semanas, a saber, que o pensamento heideggeriano do “outro começo” — isto é, do reconhecimento de que a despeito de que seja “cheio de méritos”, é “poeticamente” que habitamos esta terra — foi qualquer coisa como a crítica mais radical ao nosso modo tão moderno, tão liberal e tão capitalista de viver. Heidegger teria pensado sobre um outro modo de habitar o mundo de modo mais radical do que Marx e, na esteira deste, Sartre. Dialeticamente orientados para o futuro, Marx e Sartre estão pensando em qualquer coisa como um reino de liberdade pós-capitalista, um reino que não vai se instaurar sozinho, dependendo, para sua concretização, da práxis transformadora e revolucionária. Esse reino, contudo, está totalmente dentro da assim chamada evolução da história da metafísica. Heidegger, por sua vez, está pensando para trás, para antes da Modernidade e da própria Antiguidade, para trás de Platão e da tradição metafísica, para um tempo em que os discursos filosófico e poético eram um só e o mesmo. Tomando de empréstimo algumas palavras de Paul Ricoeur, parece que Heidegger — como o próprio Ricoeur, talvez não exatamente inspirado em Heidegger — está nos chamando para “lutar contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo”, “reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas”, a pensar “contra o adágio que diz que o futuro é aberto e contingente e o passado univocamente fechado e necessário”.
Em um livrinho chamado O que é existencialismo?, que muito circulou pelo Brasil desde o início dos anos 80, João da Penha menciona uma expressão que teria sido usada por Jacques Maritain para descrever a filosofia de Sartre. Esta seria uma mística do inferno. Essa expressão se justificaria porque, de certo modo, como observa Gerd Bornheim em seu livro sobre Sartre, toda a filosofia deste estaria coordenada, controlada, presidida e dirigida por uma espécie de rebranding existencial do dualismo cartesiano. Gosto de resumir isso em um axioma: diante de um sujeito, tudo o mais é objeto, inclusive outros sujeitos e o próprio sujeito. Um sujeito é uma pessoa que lida com coisas objetivas. Quando tenta pensar sobre si mesmo, porém, o sujeito pensante acaba incidindo sua atenção sobre uma versão de si mesmo que não é ele mesmo, mas um “eu” dotado de qualidades mais ou menos duráveis e que não coincide, senão de modo precário, com ele próprio em sua existência temporal. Quando tenta encontrar outros sujeitos, o sujeito está condenado a lidar com estes segundo a lei da relação sujeito-objeto, e o outro comparece não como outro alguém, em sua singularidade irredutível, mas como algo, como uma coisa que cumpre uma função no sistema de um mundo fantasístico que o sujeito projeta para poder habitar. As relações com o outro são, conforme o saudoso Contardo Calligaris falando sobre o amor romântico, “uma operação em circuito fechado”:
Eis os dissabores sartrianos mencionados por Bornheim. Se Sartre tem até nome para esse “circuito fechado” — circuito da ipseidade, isto é, o circuito no qual nossa consciência se volta para os entes em um jogo livre de projeção de significados e recebe, de volta, demandas, instruções, imperativos, enfim, todo tipo de norma —, nossa cultura está cheia de obras que mencionam e exploram essa perspectiva na qual toda relação com a alteridade é “narcisista”. Esses dissabores vão ficando piores quando a gente vai lendo mais e mais Sartre e vai concluindo que a sociedade é um teatro no qual os atores se perderam nos personagens — e acreditam piamente em suas encenações altamente emocionais, farsescas, cômicas, por exemplo. Além disso, a gente passa a vida inteira correndo atrás do que não pode ter, alcançar, encontrar, atrás daquilo em que, enfim, poderíamos descansar. Em uma passagem pouco lembrada de O ser e o nada, Sartre nos compara com os asnos:
“Imagine-se um asno que puxa uma carreta e tenta alcançar uma cenoura presa à extremidade de um varal colocado à frente da carroça. Todos os esforços do asno para comer a cenoura fazem avançar o veículo inteiro, incluindo a cenoura, que se mantém sempre à mesma distância do asno. Do mesmo modo, corremos atrás de um possível que nosso próprio trajeto faz aparecer, que não passa de nosso trajeto e, por isso mesmo, define-se como fora de alcance. Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais pode se alcançar.”
A imagem não é muito diferente daquela oferecida por Albert Camus e sobre o alcance do mito de Sísifo, condenado a rolar para sempre morro acima uma pedra que para sempre rola morro abaixo. Talvez seja ainda mais parecida com o suplício de Tântalo, condenado a ver lhe escaparem a água e os frutos que saciariam sua fome e sua sede. Conforme a Wikipédia, aliás, o suplício de Tântalo é sintetizado pela expressão “tão longe, tão perto”, que nomeia um conhecido filme de Wim Wenders. Afinal, os fragmentos do nosso paraíso — nossa cenoura — está bem pertinho e, ao mesmo tempo, em uma distância constante e, portanto, infinita. Em suma, a semelhança do burrico sartreano com Tântalo e Sísifo meio que justifica que um católico como Jacques Maritain tenha percebido as energias meio infernais que o existencialismo emanava.
Em Heidegger and Sartre, Joseph Fell comenta, en passant, sobre um tipo de satisfação “masoquista e bastante francesa” que Sartre frequentemente experimentava em suas obras e em sua vida. Philip Thody também observa, mais ou menos na mesma época em que Fell publicou seu livro, que As palavras é “uma das autobiografias mais hostis já publicadas por qualquer escritor”. Não tem nada dos heideggerianos humores de maravilhamento e gratidão pelo simples fato metafísico de que o ente é no pensamento de Sartre. Segundo Fell, (o) Heidegger (tardio) “desenvolve o que pode ser chamado de Wohnensdenken: ‘habitar’ (wohnen) ou ‘permanecer’ (weilen)” tem a ver com “viver os próprios limites, valorizar o dom e a beleza da luz por causa da escuridão, afirmar o limite de alguém como seu destino”. Não se trata, portanto, de mascarar nossa finitude e mortalidade. Trata-se de parar de encarar isso como se fosse um defeito de uma criatura de um Demiurgo debochado, de um Jeová raivoso ou de uma Natureza incompetente. Segundo Fell, (o) Heidegger (tardio) ensina que
“O que você procura está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça este lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não reconhecer este lugar. Em outras palavras, é porque originalmente o lugar pareceu distante quando estava perto que alguém, viajando para longe, buscou dele se aproximar.”
(O) Heidegger (tardio) sugere, portanto, que a onto-logia deve parar de ser onto-teo-logia, como sempre foi na longa história da metafísica, jogando todo o sentido e toda a verdade para as alturas de um reino transcendente. Segundo Fell, “a menos que a ontologia evite o recurso à metafísica, ela só poderá terminar no ceticismo, no niilismo, na mera especulação ou na mera fé, e não na genuína compreensibilidade dos entes”. Todavia, repetindo as palavras de Bornheim, os dissabores sartrianos restam porque “dos gregos aos nossos dias, o humanismo é metafísico”, porque “somos todos metafísicos, independentemente de nossas crenças e posições”, pois “crenças e posições ainda medram em solo metafísico” porque “somos históricos, porque vivemos o momento conclusivo de um mundo em transformação”. Embora a glosa profissional de Heidegger evite, recuse e rejeite a interpretação cronológica do pensamento do “outro começo” — isto é, não vai chegar uma época em que perceberemos que é poeticamente que habitamos esta terra —, fico com a sensação de que o tempo do maravilhamento e da gratidão é amanhã, depois de amanhã, no dia em que finalmente alcançarmos a cenoura. Lá, teremos Dias perfeitos — ou quase perfeitos —, conforme o título do mais recente filme de Wim Wenders. Até lá, restam esforços e dissabores. Pode até ser que, conforme bem viu Jonas Mekas, a gente entreveja lampejos de beleza, isto é, reflexos dos fragmentos de paraíso que carregamos conosco como pedaços de um mapa de um lugar no qual gostaríamos de habitar e no qual estaríamos em casa. É pouco, mas é quase tudo.
Parece um pouco ridículo — é bastante ridículo — dizer que um filósofo alemão (por meio de um intérprete ianque, claro) ajudou este gaúcho — já meio cariúcho, admito — a prestar atenção nas frestas e rachaduras por meio das quais o real deixa passar a luz da força discreta do possível e reconhecer nessa luz, com maravilhamento e gratidão, um tipo muito especial de beleza, uma beleza que se insinua como promessa de paraíso. Todavia, sigo com outro gaúcho, que também se tornou meio cariúcho, que via em Sartre a força de uma filosofia que explicava nossos dissabores. Segundo ele, de certo modo, somos todos sartrianos porque Sartre explica não só nossos infernos como, me parece, nossa capacidade de realizar e experimentar a nossa capacidade masoquista de se deliciar nos infernos — que, segundo Sartre, nós mesmos criamos. Variando sobre o que disse sobre Hegel um certo católico mais conhecido por aqui do que Maritain, às vezes penso que Satanás, na verdade, é Sartre.