Nosso risível amor, nossa nostalgia sem fim*
Não é meio risível esse nosso amor por Sofia, afinal?
Uma das doçuras das minhas últimas manhãs de terça-feira é ser eventualmente interpelado de um modo muito específico, para o qual não tive - caso haja algo assim - nenhum “treinamento” intelectual, acadêmico ou filosófico para saber responder. Tais interpelações são realizadas de modo mui espontâneo pelo estimado professor que supervisiona minhas atividades de pós-doc e consistem em arguições acerca de, digamos assim, experiências. Hoje, depois de um encontro no qual se falou sobre certas diferenças entre as angústias de Heidegger e Sartre, o professor perguntou se nossa experiência de pensamento era perpassada ou caracterizada por alguma forma de angústia. Com menos pudor do que talvez eu deveria ter nessas circunstâncias, tive de dizer que acho que não conheço a experiência da angústia sobre a qual tanto penso e da qual tanto falo há mais ou menos uns 15 anos.
A angústia planifica a significatividade do ente, dizem. Os “desertos da angústia”, na expressão de France Farago, seriam o fundamento secreto do mundo aparentemente sólido em cuja superfície habitamos. No fundo, a falta de sentido em si das coisas - nossa experiência dessa falta de sentido - nos mostraria algo muito profundo acerca da realidade. Nos mostraria a própria abertura ontológica na qual as coisas se mostram com sentido, talvez. Ou talvez nos mostraria nossa condição de radical solidão, de solitários criadores de sentido em um mundo todo nonsense. Por meio dela deveríamos poder nos reintegrar com nossa finitude, com nossas intransferíveis mortalidade e responsabilidade. Mas ela é razoavelmente rara e dá muito bem para passar muito tempo em dispersa errância, “saracoteando daqui pra acolá / na Barra, na farra no Forró Forrado / na Praça Mauá, sei lá”, sobretudo quando é bem bom saracotear, quando se está em casa tanto aqui quanto acolá.
O estar (ou não estar) em casa é de certa forma um tema do pano de fundo das conversas das terças-feiras. Para encurtar a conversa, uma das 365 maneiras de olhar para a história da filosofia é ver em Platão um grande agente imobiliário do outro mundo, como diz Sloterdijk. O “gesto brutal” de Platão cindiu - talvez para sempre - o mundo em dois, em um esquema no qual só um deles pode ter sentido. Do que se depreendem más notícias: certamente o mundo com sentido não é o nosso. Pode até ser que Platão não tenha dito exatamente que esse mundo não tem sentido, que não é verdadeiro, que não é real. Mas segundo certas teses de Nietzsche muito apreciadas por Heidegger, Platão jogou a primeira bola de neve e iniciou uma avalanche irrefreável, na qual estamos todos meio atolados. Certamente meio exagerada, nos pedindo mais boa vontade do que talvez sejamos capaz de oferecer, essa tese meio épica tem lá seu valor quando nos ajuda a explicar a prosa do mundo: parece razoável supor que o sentido está ou perto, ou em outro lugar. Com todo mundo de Platão até Hegel (vou dar um descontinho para meu querido Nietzsche, que tentou resolver essa equação com o amor fati), somos levados a crer que o sentido está em outro lugar. Se meu comentador favorito da obra de Heidegger está correto, contudo, a metafísica sempre buscou ailleurs o que sempre esteve “-aí”, sempre esteve “perto”. Em suas belas palavras:
"O que você busca está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça esse lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não reconhecer esse lugar. Em outras palavras, é porque originalmente o lugar pareceu distante quando estava perto que alguém, viajando para longe, buscou dele se aproximar."
Tem toda uma topologia metafórica nesse trecho, já que o “lugar” buscado pela metafísica só é um lugar em um sentido muito especial do termo, já que é o pensamento que erra disperso procurando para além dos horizontes tudo aquilo que estaria meio que invisível, sob os próprios pés, enquanto condição da própria constituição desses horizontes. Eu precisaria de mais espaço do que acho que seria razoável utilizar aqui para tentar, com muita dificuldade, elucidar o que seria esse lugar de tempo, esse “lugar do acontecimento” que é o “acontecimento do lugar” onde se dá a abertura para o acesso aos entes, para a experiência ordinária com as coisas. Todavia, uma vez dispersos em meio aos entes na prosa do mundo, seríamos por “natureza” perpassados por uma espécie de saudade ou, como prefiro, de nostalgia. Aliás, para Heidegger, die Philosophie ist eigentlich Heimweh, ein Trieb überall zu Hause zu sein. Na tradução de Pedro Duarte, “na verdade, a filosofia é nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda parte”. O grifo é meu e a frase e de Novalis. É ao poeta que Heidegger recorre para apontar para o que seria, em essência, a filosofia: nostalgia, Heimweh, saudade de casa. Gosto dessa palavra porque ela também foi escolhida para a tradução de uma outra frase importante de Heidegger, na qual ele diz que “a angústia situa-se na secreta aliança com a serenidade e doçura da nostalgia criadora”. Aqui, “nostalgia” está no lugar de Sehnsucht, que também significa um anseio inominável, um desejo que se satisfaz consigo próprio enquanto desejo, que quer durar enquanto desejo, que não quer desaparecer na saciedade. Nesse sentido, a filosofia é uma saudade incurável, um desejo inesgotável, uma nostalgia sem fim.
Metade da minha fórmula, que vai no título desse texto - e com a qual pretendo, mais ou menos, designar o que, em vez de angústia, perpassa meu pensamento quando penso sobre filosofia - está explicada. A outra metade eu quero pensar de modo mais ligeiro e por meio de expedientes mais leves do que a pesada filosofia alemã. Porque é fato conhecido e sempre lembrado que a filosofia é um amor - embora esteja também tão intimamente vinculada ao terror, como bem observa meu supervisor. Mas se ela é um amor, é um amor meio risível. Meio risível porque por meio dela a gente frequentemente procura em outro lugar o que já-sempre esteve tão perto. Meio risível porque o “conceito”, diante de todos os fins para os quais supostamente serve, sempre parece uma solução meio inadequada, meio que como uma improvisação insatisfatória diante de algum outro (e melhor) jeito de chegar nas coisas. “Enquanto o homem pensa, Deus ri”, diz um provérbio judaico lembrado por Kundera. Enquanto o ser humano pensa, seu ânimo fica pesado. Schwermut: ânimo pesado ou melancolia, como mais de um tradutor de Heidegger optou por traduzir o termo. O ânimo da filosofia é pesado? Se é, por que isso seria risível? Por que Deus riria do ser humano enquanto este pensa? Só porque enquanto o ser humano pensa, a verdade lhe escapa? Só porque quanto mais pensam, mais os seres humanos se afastam uns dos outros? Só porque ninguém nunca é aquilo que pensa ser? Bem, essa é a impressão de um romancista tcheco que reivindicava para sua arte nada menos do que o estatuto de eco do riso de Deus, um eco que se fez ouvir assim que Rabelais e Cervantes lançaram sobre o mundo seu deboche, prenunciando por seu riso todo o sentido do absurdo que a filosofia levaria ainda alguns séculos para descobrir.
Mas a República Tcheca está muito longe. ”O Havaí, seja aqui”, disse meu querido supervisor quando perguntei se era possível poeticamente habitar o Rio ou qualquer outra cidade. Mesmo passando pelo menos uma vez por semana na Via Peti, não peguei imediatamente a referência. Mas lembrei de outra, que inclusive já apareceu vez ou outra nas conversas da disciplina. Lembrei de “o nosso amor a gente inventa pra se distrair”. Eu acho que é por aí: a filosofia é um amor que a gente inventa pra se distrair, pra procurar em outro lugar o que já estava perto. Um amor que a gente frequentemente pressente que é risível, como todo amor do qual a gente fica bobo quando fala dele na frente dos outros que dele não partilham e que, por isso, não podem compreender. Um amor meio atrapalhado, sem dúvida nenhuma, já que facilmente se deixa ser vivido num estado de imensa distração, deixando escapar toda a leveza, se levando e exigindo ser levado demasiadamente a sério (lembro de um texto sobre Hegel, por exemplo, que ajuda a tornar compreensível certo estranhamento que sua filosofia causa, já que não seria a filosofia de um seeker de Sofia, mas de alguém que se tomava pelo próprio owner dela, pelo proprietário da casa de Sofia e dela própria em sua prisão domiciliar, portanto). Meu comentador preferido da obra de Heidegger diz que nas mãos deste pensador, especialmente no período tardio de sua obra, em que o pensador está apaixonado pela poesia, o programa fenomenológico sofreu certas transformações. A intencionalidade husserliana teria se transformado em cuidado e este, no fim da obra, em amor. Talvez isso explique certo desdém pelos estranhos textos tardios de Heidegger, frequentemente considerados meio risíveis: todas as cartas de amor, como todos os amores e, portanto, todos os textos de filosofia são, em um sentido muito especial da expressão, meio risíveis.
*O título desse texto é uma variação sobre o último verso de All souls, de May Sarton, “our complex love, our mourning without end”, que se transformou no título de uma palestra de um outro querido professor, proferida em dezembro de 2019.