No meu exemplar do terceiro volume de Tempo e narrativa tem apenas um postite. Ele marca uma página na qual tem uma nota de rodapé que, em determinado momento, me pareceu muito importante. Nele, Ricoeur está comentando um texto intitulado Was aus Handlungen Geschichten macht? (O que transforma nossas ações em histórias?), de Hermann Lübbe. “Não há nada para contar, nota esse autor, enquanto as coisas ocorrem como previsto ou desejado; só se conta o que se complicou, contrariou ou até tornou irreconhecível a simples execução em andamento de um projeto”. A nota vai no capítulo intitulado Renunciar a Hegel. Nesse mesmo capítulo, Ricoeur diz que talvez nunca saibamos se a ascensão e a queda do idealismo hegeliano é algo da ordem das catástrofes ou se foi uma libertação. Porém, de todo modo, o idealismo - e, com ele, a metafísica - caiu e é preciso resistir às tentações da nostalgia por meio da coragem do luto.
Faz alguns anos que me envolvi com o narrativismo de Ricoeur. Faz alguns anos que sua ideia de que nossas identidades são histórias me apareceu como uma daquelas coisas indisputáveis. Com o tempo e a pesquisa, a identidade entre a vida (ou a existência, para ser de certo modo mais rigoroso) e a narrativa me pareceu menos e menos óbvia. De repente as páginas tristes de Galen Strawson sobre a vida não ser - e dever não-tentar ser, dever resistir à perigosa tentação de ser - narrativa me parecem tão defensáveis quanto as de David Carr que, indo mais longe do que Ricoeur, defende uma continuidade entre vida e narrativa, uma perspectiva em que vida é narrativa. Esse assunto se transformou, para mim, em uma espécie de antinomia, adquirindo um caráter de indecidível filosófico, já que tanto a tese quanto sua negação parecem igualmente defensáveis. MacIntyre parece correto: as histórias podem ser contadas porque são vividas. Kundera também parece correto: mesmo que Aristóteles, na Poética, tenha mostrado desprezo pelo “episódio” sem lugar no main plot, porém, talvez a vida não seja senão um amontoado de episódios, uma pilha de elementos descontínuos cuja unidade é meramente artificial, oferecida pelo artifício narrativo. Já não tenho uma posição sobre esse assunto que amo e, às vezes, me vejo naquela posição filosoficamente muito ruim, meio conciliadora, que admite a ocorrência concreta de ambas as posições. Às vezes me pego pensando que tem gente que é narrativa, tem gente que é episódica. Na tese, sustentei que ser episódico é ser narrativo por negação, digamos assim. É um truque argumentativo que pode ser convincente - isto é, considerado argumentativamente suficiente - sem precisar ser verdadeiro. Um truque que, diante de olhos sagazes, não passa de um truque, porque não resolve nada - e, no máximo, indica uma convicção por parte de quem o faz. Se as eleições fossem hoje e eu tivesse que eleger uma posição sobre esse assunto, alegaria, com uma falta de entusiasmo quase empirista, que as pessoas podem ser mas também podem não ser “narrativas”, a depender das circunstâncias de seu desenvolvimento intelectual, cultural, etc. Narrar histórias e se experimentar nelas dependeria de uma aprendizagem, da aquisição de hábitos, etc.
Em pelo menos dois clássicos da tradição romanesca, a leitura de narrativas é o expediente do enlouquecimento dos protagonistas. Alonso Quijano e Emma Bovary endoidam depois de ler muitos livros, de ler livros demais, depois de uma intoxicação narrativa. Quixotesco é adjetivo para quem ingenuamente vive aventuras que só existem na própria cabeça e bovarismo virou mesmo categoria psicopatológica, como lembra Maria Rita Kehl em Bovarismo brasileiro, no qual examina essa maluquice de querer ter uma vida e viver uma história que não é a sua. Lembro disso porque também lembro de Ricoeur, em O si-mesmo como um outro, tratando as narrativas de ficção como laboratório, como ambiente de experimentação do juízo moral. Ricoeur parece nos convidar para uma Bildung suave, por meio da qual seríamos um pouco menos tolos depois de ler Cervantes e Flaubert. Estou forçando nas tintas para realçar os contornos de uma perspectiva da qual não gosto muito. Não sei se depois de ler O homem sem qualidades, de Robert Musil, fiquei menos tolo. Não sei mesmo se não fiquei mais tolo ao me deixar levar pela sugestão do autor, de que vivemos em um mundo de “qualidades sem homens”, no qual as vivências flutuam daqui para acolá sem ninguém que as viva, por exemplo. Quando encontro ideias de “instrumentalização” do romance, do cinema, da arte, etc, em nome de aprimoramentos morais e políticos, meu Oscar Wilde interior desperta e lembro que “podemos perdoar alguém por fazer uma coisa útil desde que esse alguém não a admire”. O grifo é meu. Insisto: eu sei que Ricoeur não é um palestrante motivacional, não é um pilantra qualquer que, para nos vender caro alguma coisa que não existe, dirá algo como “a leitura de ficção estimula o hipocampo e o córtex pré-frontal otimizando a precisão de seus juízos em 87%”. Ricoeur tem uma visão mais integral do que é o ser humano e, de modo bem grosso, ele acha que somos melhores quando temos familiaridade com o estoque de sabedoria proporcionado pela história das histórias de ficção. Mesmo que Emma Bovary e Alonso Quijano nos sirvam como lembretes e balizas do que pode acontecer com quem se perde nas narrativas, me parece - isto é, tenho a sensação, a impressão, talvez o sentimento - de que é melhor viver uma história do que não viver.
A psicanálise - ou ao menos Maria Rita Kehl - ajuda a gente a perceber que muita narrativa é, frequentemente, um problema. É excesso de sentido, um excesso quase sempre aflitivo, expediente de aflições que, por meio da psicanálise, podem ser levadas menos a sério. Em suma, se todo mundo é neurótico porque mora na própria fantasia, meio que dentro da própria cabeça, em um mundo que nunca pode se dar sem filtros pessoais, tem gente que é muito neurótica, que é neurótica de um jeito sofrido, sofrendo por coisas que só existem em suas cabeças. Como a fantasia é uma casa, a gente prefere morar nela do que não ter onde morar e, assim, muito frequentemente, quando a vida dá uma ocasião de perceber que determinado problema não existe, a gente fecha essa janela e abre outra por meio do qual esse problema pode aparecer, mesmo que sob outro ângulo. Aliás, eu acho que o habitar e a narrativa possuem uma vinculação muito íntima, muito profunda, que não tenho como tratar adequadamente aqui. Mesmo assim, acho que posso dizer bem rapidinho que, de certo modo, em sentidos muito especiais destes termos, a gente habita narrativas - ou, como diz um poeta, “o nosso lar é a nossa história”. E eu acho que é melhor que seja assim, mesmo quando não é tão bom assim.
Pensando no tema da narratividade, já falei algumas coisas, em alguns dos meus textos acadêmicos*, como por exemplo que temos um desejo de ser que frequentemente se configura como desejo de viver belas histórias, que certo senso narrativo pode intensificar nossa tão empobrecida experiência do tempo e que esse senso narrativo também é um modo muito especial de jardinagem de lembranças na medida em que é cultivo de um tipo de experiência menos errante, menos dispersa, menos vazia do que essa de sujeitos meramente consumidores que parece ser nosso default setup. O encontro entre a hermenêutica narrativista de um filósofo francês e este leitor latinoamericano de escassos recursos financeiros e materiais oportunizou uma leitura na qual um senso narrativo compensou a falta desses recursos materiais e financeiros. E como mesmo o mais abstrato uso da linguagem sempre é uma mensagem - mesmo que eventualmente seja uma mensagem do tipo daquelas colocadas em garrafas lançadas nos mares, sejam estes de águas ou de informações -, acho que o que tenho feito nos últimos anos pode ser resumido como uma tentativa de mostrar o valor das narrativas e do senso para a narratividade que eventualmente acontece, já na experiência, se a gente prestar certa atenção especial aos dias e às horas. Em suma, mesmo se a gente não tem bens materiais — nem a grana para obtê-los —, acho que a gente sempre tem história pra contar se se dispor a viver a vida como história. Porém, pensar assim é ter de também estar ciente de que a mensagem precisa incluir o aviso de Hermann Lübbe mencionado por Ricoeur: às vezes simplesmente não há o que narrar.
Eu gosto muito do provérbio zen que nos lembra que tanto antes quanto depois da “iluminação”, a vida é carregar água e cortar lenha. Se a narrativa, em certa perspectiva antinarrativista, põe ordem na desordem ao colocar sentido onde não tem, às vezes essa ordem é aflitiva porque o sentido é colocado por meio do sofrimento. Foi minha amiga Marina que me soprou algo que até hoje funciona como um lembrete: o desejo de viver belas histórias, que virou título de minha tese de doutorado, precisa necessariamente do complemento que ela ofereceu, como sugestão de subtítulo: nem que seja dentro da própria cabeça. A importância da narrativade enquanto, digamos, “transcendental da existência”, é tanta que, conforme observa Maria Rita Kehl, às vezes a gente precisa de menos narrativa dentro de nossas cabeças. Às vezes, talvez muito frequentemente, talvez mesmo na maioria das vezes, a gente precisa lembrar que fora das nossas cabeças, a gente está sempre apenas carregando água e cortando lenha, sem nenhum drama adicional. Às vezes a gente precisa lembrar que não tem nada em jogo em dias que serão sucedidos por outros dias em que teremos, como nos que vieram antes e virão depois, a mesma água e a mesma lenha nos esperando — ou, para ser menos metafórico, as pias de louça nos esperando. Às vezes o remédio narrativo para a falta de sentido vira veneno e nos deixa dependentes, viciados, adictos do sentimento de enredo que vai parecer melhor que certo vazio de dias e horas que parecem virar cinzas sem esse sentimento. Às vezes esse sentimento é um mau sentimento, por meio dos quais nos vinculamos ao sofrimento por simples horror vacui. Lembro de duas frases, que parecem ter sido, embora não tenham sido, parte de uma conversa. Drummond pergunta se preferimos o nada ou o sofrimento. Faulkner diz que prefere o sofrimento ao nada. Depois de anos envolvido com o desejo de viver belas histórias, acho que aprendi a ver valor e beleza nas circunstâncias em que não há picos ou vales de significatividade narrativa, mas apenas o suceder das cenas que não clamam por registro e perpetuação. Acho que aprendi a ver o valor dos períodos nos quais o espaço entre os nossos sonhos e a nossa vida está vazio e livre como uma estrada sem trânsito nem paisagem, lugares de tempo em que nada acontece. Pode parecer que esse acontecer de nada seja catástrofe. Talvez, no entanto, seja possível olhar para esses tempos sem a nostalgia venenosa que não nos deixa reconhecer uma libertação.
*Esses textos podem ser encontrados no meu academia.edu.
Tem um pequeno pensamento/aforismo meu: "Só contamos histórias porque nos sobramos no tempo".