Histórias e ideias
Para reabrir o passado é preciso que todas as páginas estejam abertas ao mesmo tempo
Mudei a bio deste espaço. Apaguei o que antes estava ali e coloquei uma frase de Paul Ricoeur que contempla muito meu gosto e que de certo modo simboliza o que eu chamaria — se fosse obrigado a isso — de convicção intelectual, a saber, a ideia de que todos os livros, todos os textos, de que tudo aquilo que se deixa interpretar está aberto ao mesmo tempo no presente vivo da compreensão. Quando Ricoeur lança mão dessa frase, dá pra dizer que ele está de certo modo se justificando pelo fato de que, em pleno ano 2000, invocará as ideias de Platão e Aristóteles para lhe ajudar a pensar certos problemas. Ricoeur é um entusiasta da ideia de que é possível — e de que é eventualmente necessário — “reabrir o passado, e olhá-lo como um conjunto de passados que foram uma vez futuro possível”, como bem sumariza o historiador François Hartog — que lhe segue de perto nessa ideia da qual, em certo sentido, depende seu ofício. O hermeneuta e o historiador precisariam, portanto, de uma sensibilidade muito especial para formas muito especiais de “causalidade”, formas bem mais lentas e mais difíceis de detectar em sua atuação e efetividade sobre nosso presente. Reconstruir a história dessa convicção, porém, exigiria que eu entrasse nas ideias de Koselleck, seguisse na direção de Gadamer, continuasse no caminho que leva até Heidegger e pagasse um caro pedágio na praça de historiadores e hermeneutas que, no século XIX, tiveram que se virar com o problema da compreensão histórica da história. É um caminho bonito e já vi ele de cima, sobrevoando seus prados e cordilheiras, em livros que contam a história dos livros que pensam a compreensão histórica da história. Vou por outro caminho, porém, bem mais miúdo, todavia, e vou contar uma história sobre um livro de história.
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Em 2010 eu estava no primeiro ano de mestrado em filosofia. Conheci um sujeito que tinha a minha idade e que estava entrando na faculdade de história. Por diversas razões biográficas que não cabem aqui, convivi bastante tempo com esse sujeito. Um dia ele me presenteou com um livro de história. Por nenhum motivo especial, vale dizer. O presente não estava embalado nem nada. Ele apenas alegou que eu talvez fosse gostar do livro e que era um livro de história diferente dos livros de história que ele lia na faculdade, pois não explicava as coisas históricas por um viés estritamente socioeconômico. Ele tirou o livro da mochila e fiquei animado com aquelas enormes letras cinzas numa capa preta, toda preta, sem qualquer afresco senão um discreto e estilizado “P”, da editora Palíndromo, no canto inferior direito. “A GRANDE CADEIA DO SER”, dizia na capa, assim em maiúsculas. “Arthur O. Lovejoy”, menor, embaixo do título. A grande cadeia do ser. Eu já tinha ouvido falar desse livro nas aulas de pelo menos dois professores, mas não sabia o que esperar. Sabia, porém, que ele ia ficar muito bonito nas minhas prateleiras ao lado de O ser e o nada, de Ser e tempo, de A insustentável leveza do ser. Tem uma galera na filosofia, na qual me incluo, que adora o tal do “ser” — até o momento em que alguém pergunta o que é o tal do “ser” e a gente tem que fazer o Agostinho quando este é perguntado sobre o que é o tal do “tempo”. Aliás… A relação entre “ser” e “tempo” pode nos ajudar a encaminhar essa questão e… Não, não. Desculpem. Quase me perdi.
A grande cadeia do ser, de Lovejoy, é, conforme vai na folha de rosto, “um estudo da história de uma ideia” e se constitui por conferências “proferidas na Universidade de Harvard em 1933”. O livro foi publicado em 1936. Até onde pude perceber, a tradução de Aldo Barbieri pela Palíndromo é a primeira e única até agora já feita para o português, tendo sido lançada em 2005. Levando isso em consideração, meu presente ainda estava bem fresco quando o recebi. Todavia, levei alguns anos para ler o livro como se deve, só tendo dedicado tempo a ele alguns anos atrás, durante uma rotina algo maníaca de leituras por meio da qual tentei driblar o mal-estar do tempo pandêmico. Já tinha, contudo, por meio do parecer da Alexandra, um background sobre como Lovejoy e sua história das ideias era encarado nos currículos da faculdade de história e nos debates sobre teoria da história. Uma coisa meio ingênua, meio selvagem, tão precursora quanto, hoje em dia, pouco profissional em termos metodológicos. Considerando que na filosofia eventualmente se chama de historiográfico o trabalho de exegese reconstrutiva dos argumentos de alguém mesmo que nada propriamente histórico esteja sendo narrado, parece justo dizer que a história que Lovejoy narra é uma história filosófica, isto é, uma história concebida filosoficamente sobre um assunto filosófico e que, por seu conteúdo, quem sabe, com mais sorte do que na (teoria da) história, na qual o autor já é qualquer coisa como um monumento, Lovejoy interessaria sobretudo ao público filosófico.
Acho que faltou sorte ao Lovejoy. Não há exemplares da tradução para o português nem nas bibliotecas da UERJ, nem da UFSM, conforme consultei agorinha. Na UERJ há um exemplar do original em inglês em uma biblioteca que fica em Botafogo, longe do campus Maracanã. Acho que ninguém vai lá pra ler Lovejoy (o único exemplar está disponível para empréstimo nesse momento).
Talvez um brevíssimo comentário ajude elucidar o que tem de interessante nesse livro. Sua introdução é intitulada O estudo da história das ideias. História “das ideias” não é história “da filosofia”, segundo o autor, porque é algo “mais específico” e “menos restrito”. É mais específico porque não é história dos sistemas filosóficos, mas de algumas ideias que parecem sobreviver, mesmo inominadas, de sistema em sistema, produzindo efeitos ao longo das épocas. É menos restrito porque — e essa é uma coisa que talvez seja um pouco espantosa para quem é da filosofia — não é só na filosofia que as ideias se formam, se mostram e exercem seus efeitos na cultura. Embora o discurso que Lovejoy mais mobiliza para mostrar a presença nítida de ideias que também aparecem na filosofia seja o da poesia, ele chega a falar da relevância do paisagismo para fins de observação das ideias vivas que vigem nas épocas. Para rastrear essas ideias, Lovejoy sugere a observação de alguns traços que, admito, podem fazê-lo parecer excessivamente especulativo e, portanto, pouco profissional aos olhos historiadores de hoje. A rigor, acho que mesmo os olhos filosóficos hodiernos não tem lá muita paciência com o tipo de — e aqui arrisco essa classificação por minha conta e risco — hermenêutica comparatista que Lovejoy promove. Eis as dicas de Lovejoy para detecção de ideias que exerceriam efeitos sobre nós em muitos campos da cultura:
- “Há suposições implícitas ou incompletamente explícitas ou hábitos mentais mais ou menos inconscientes, operando no pensamento de um indivíduo ou de uma geração”;
- “Essas suposições endêmicas, esses hábitos intelectuais, são frequentemente de um gênero tão geral e tão vago que lhes é possível influenciar o curso das reflexões de um homem em praticamente qualquer assunto”;
- “Um outro tipo de fatores na história das ideias pode ser descrito como suscetibilidades a diversas espécie de pathos metafísico (“obscurantismo”, “esoterismo”, “eternalismo”, “monismo panteísta”, “voluntarismo”, etc)”;
- “Outra parte de seu trabalho [do historiador de ideias], se ele quiser tomar conhecimento dos fatores genuinamente operativos nos mais amplos movimentos do pensamento, é uma investigação que pode ser chamada de semântica filosófica — um estudo das palavras e expressões sagradas de um período histórico ou um movimento, visando ao esclarecimento de suas ambiguidades, ao inventário de seus vários matizes de significado e a um exame do modo como associações confusas de ideias emergidas dessas ambiguidades influenciaram o desenvolvimento de doutrinas ou aceleraram a insensível transformação de um hábito de pensamento em outro, talvez em seu verdadeiro oposto”;
Além desse último ponto apontar para a necessidade de elaboração de um programa e aparentemente se parecer ao tipo de coisa que hoje, com a tecnologia atual, pode ser feito de maneira ótima e otimizada (quem já se serviu da busca por termos específicos em documentos digitais conhece bem essa aceleração da qual estou falando), Lovejoy admite que o tipo de ideia que ele mesmo perseguirá é “mais definido e explícito e, portanto, mais fácil de se isolar e identificar de maneira confiável” do que outros. De fato, Lovejoy perseguirá ideias que nem sempre foram nomeadas ou usadas como conceitos bem definidos e que aparecem nas páginas dos grandes filósofos e poetas. De modo bem grosso, essas ideias são tão pesadas que frequentemente se estenderam, por sua relevância, por diversas disciplinas: cosmologia, teologia, filosofia da natureza, enfim, em muitos e distintos discursos que perfazem os assuntos de filósofos e poetas. São ideias como a daquilo que dá título ao livro, a ideia de uma grande cadeia do ser, isto é, uma grande corrente encadeada de tipos de entidades que se mantém ligada por um princípio de continuidade que supõe uma hierarquia ontológica entre esses tipos de coisas, hierarquia que não explica porque entre um tipo e outro de coisa não existem infinitas gradações e, portanto, exigirá o princípio de razão suficiente, princípio com o qual será defrontada a ideia de um Deus que, encarnando o princípio de plenitude, causa tanto espanto e estranhamento que nos obriga a perguntar: se era pleno, pleníssimo, porque emanou ou criou o que quer que seja? Não dá nem pra chamar de “metafísica” o domínio do assunto do livro de Lovejoy, embora de certo modo seja sobre o pavimento da metafísica que suas reflexões, em prosa deliciante, se desenrolarão. Todavia, o leitor filosófico pode se surpreender ao ver bem mais Plotino, Spinoza e Leibniz do que Kant, que aparece bem pouquinho, ou Hegel, que praticamente não aparece em um livro cujo protagonista do desfecho é seu irmão menor, Schelling.
Estou contando essa história desse livro de história em um sentido muito especial do termo história porque acho que o texto do Lovejoy é uma das melhores portas de entrada para o vício em história das ideias ou, melhor dizendo, já que esse jeitão de contar história é mais “filosófico” do que “histórico” e se monumentalizou antes de virar escola, em história do pensamento. Vou usar dois capítulos dele em sala de aula essa semana. Parte da minha convicção suave em utilizar seu texto é oferecida por um trecho do texto dele próprio. Diz Lovejoy:
“Para muita gente — para a maioria dos leigos, suspeito eu —, a leitura de um livro de filosofia normalmente não é mais que uma forma de experiência estética, mesmo no caso de escritos que parecem destituídos de todo aparente atrativo estético; volumosas reverberações emocionais, de uma espécie ou outra, emergem no leitor sem a intervenção de qualquer imageria definida.”
Embora Thomas Mann diga algo parecido sobre a beleza da filosofia de Schopenhauer, ainda mais do que os livros de filosofia, acho que os livros narrativos, de ficção ou de história, são ainda melhores em produzir as volumosas reverberações emocionais típicas das experiências estéticas. Se depois de vinte anos eu já não tenho o privilégio de poder achar que sou um leigo em certas matérias, acho que uma das coisas nas quais a gente esquece de apostar e confiar é justamente a dimensão estética de um texto. Talvez essas considerações acima sejam, aliás, precisamente apenas efeitos do tempo que passou e se acumulou sem que nele eu tenha vivido muitas ocasiões em que meus sentimentos e ideias pudessem se sentir em casa, admito. Talvez eu seja apenas intelectualmente promíscuo o suficiente para ser sensível ao livro monumentalizado na história e meio esquecido na filosofia. Se essa sensibilidade é estética ou, pior ainda, estetizante, bem, tenho que admitir que se acho que dá pra reler assim as páginas do passado, supostamente abertas no mesmo tempo em que se abrem as do presente, é porque os passados que foram uma vez futuro possível contém em si, esquecidas, verdades e belezas.