Guardar e aguardar lampejos de beleza
A felicidade da beleza como a única razão suficiente de uma existência que se dá no horizonte da finitude
Há mais ou menos uns 15 anos, sempre que eu ia viajar eu pedia emprestada a câmera digital da minha irmã. Há mais ou menos uns 15 anos, portanto, não era trivial que os telefones celulares populares tivessem câmeras — ou que tivessem câmeras minimamente razoáveis — e se justificava andar por aí com câmeras digitais. A gente tirava um tanto de fotos, fazia algum vídeo e no outro dia, tirava mais ou menos uma hora para passar as fotos (e vídeos) para o computador. Depois, a gente escolhia qual ia para o orkut, se alguma merecia ser a foto do perfil do MSN, e daí por diante. Por fim, porque geralmente os HDs dos computadores não tinham lá muito mais do que 80Gb, a gente ia transpondo tudo para e guardando tudo em CDs e DVDs, para liberar espaço. Naturalmente, a gente fazia isso com todo tipo de arquivo, não só com aqueles que nós próprios produzíamos. Todavia, com o passar do tempo, com o avanço exponencialmente rápido das tecnologias, dispensamos completamente as câmeras digitais e, com relação ao guardar ou não guardar tudo, nos dividimos em dois grandes grupos, a saber, os que guardam tudo e os que deletam tudo. Eu, que certamente deleto muito, sou alguém que guarda muito mais do que deleta. O meu lado que não guarda coisas é orientado por aquilo que Milan Kundera diz, inspirado no estilo de composição de Leoš Janáček, quando diz que só o essencial tem o direito de existir. É possível, portanto, que nossa música, nossa narrativa de ficção e nosso álbum de fotografias guardem apenas o essencial. Mas, conforme já admiti aqui noutra postagem, o essencial pode ser muita coisa, ou talvez poucas coisas muito grandes, o que faz de mim, em um sentido muito especial do termo, um guardador de rebanhos. E apenas muito recentemente que descobri um poema no qual, me parece, está o sentido mais bonito de guardar:
Pois bem. Neste último domingo, ao longo de quatro horas, quarenta e quatro minutos e trinta e dois segundos, assisti o que acho que pode ser o maior monumento cinematográfico já erguido ao “guardar”. Tendo descoberto o filme totalmente por acaso, ao esbarrar em seu título e me encantar com sua beleza, li a sinopse e percebi que eu tinha que assisti-lo. Conhecendo um pouquinho a mim mesmo, eu já sabia, depois de ler a sinopse, que terminaria gostando do que veria ao longo de quase cinco horas. Mas esse filme é da ordem das coisas que a gente já pode antecipar que são bonitas sem, porém, imaginar o quanto! Estou falando de Ao caminhar entrevi lampejos de beleza (As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty), lançado em 2000, de autoria de Jonas Mekas. Considerado descaradamente feliz, o filme, segundo a Wikipédia, sendo “compilado a partir das filmagens caseiras de Mekas, […] é uma tentativa do diretor de reconstruir sua vida através dessas filmagens, gravadas ao longo de 30 anos. Os eventos no filme são coisas como aniversários e piqueniques, e também inclui eventos especiais de sua vida pessoal, como os primeiros passos de seus filhos. Ao longo do filme, Mekas expõe seus comentários e explicações sobre o que o espectador está à presenciar”. Esses comentários e explicações, conforme descobri ontem, cabem em oito páginas de texto. Desnecessário dizer que ler apenas as páginas sem ter visto o filme no qual o “texto” ocorre, em um certo tom de voz, entre risadas entrecortadas por pausas e suspiros, não deve ser a mesma coisa do que acompanhar esses comentários e explicações ocorrendo durante o bombardeiro de belas memórias guardadas por Mekas ao longo de 30 anos. Mesmo assim, o que vai se seguir agora é um comentário aos comentários feitos pelo diretor ao longo das quase cinco horas de filme.
Evidentemente, um conjunto aleatoriamente montado de imagens aleatoriamente filmadas não é, per se, algo comovente. Mekas nos adverte para isso, especialmente ao final do filme, quando declara que não vai se desculpar por ter feito seu espectador percorrer quase cinco horas de suas memórias. Ao caminhar… só pode nos comover ou encantar se conseguimos nos sintonizar com o sentimento que levou e leva alguém a registrar momentos aleatórios de sua em razão de uma alegada beleza, uma beleza várias vezes associada, durante os comentários de Mekas, à própria felicidade. Com alguma sorte, conseguimos nos sintonizar com o tipo de vida e de propósito que leva e que levou alguém a — de modo aparentemente maníaco e certamente imbuído de entusiasmo — guardar tantas imagens. Não é casual, portanto, que a foto do texto impresso de Mekas, que vai aí acima, tenha sigo tirada com outro texto ao lado. Acho que o filme de Mekas me pegou porque eu estava de certo modo preparado para me deixar comover e encantar por seus lampejos de beleza. E essa preparação, não é nenhum exagero dizer, foi proporcionada por aquilo que um falecido e (no Brasil) pouco conhecido professor, chamado Joseph Fell, disse sobre a filosofia de Heidegger. Para não me estender aqui, vou apenas citar — novamente — um pequeno trecho do que, segundo esse professor, aprenderíamos com Heidegger. Segundo Fell, Heidegger teria nos ensinado que
“O que você busca está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça esse lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não reconhecer este lugar. Em outras palavras, é porque originalmente o lugar pareceu distante quando estava perto que alguém, viajando para longe, buscou dele se aproximar.”
A rigor, a passagem se refere ao modo metafísico de fazer filosofia. Esse modo do filosofar nos condenaria à falta de sentido — ao niilismo — por fazer com que todo o sentido e toda beleza da realidade pertençam unicamente ao âmbito do Mundo das Ideias, da Cidade de Deus ou do grande desfecho secular da aventura humana na terra, o assim chamado Fim da História. O pensamento da finitude proposto por Heidegger seria, segundo Fell, marcado por uma atenção especial ao âmbito originário da existência, âmbito frequentemente soterrado sob camadas e mais camadas de entulhos explicativos que, ao oferecer explicação para quase tudo, não deixa sobrar beleza em quase nada. O pensamento da finitude, nesse sentido, é uma tentativa de promover uma legítima revolução copernicana na filosofia: o sentido e a beleza das coisas está aqui perto, e não nos “céus inteligíveis”. Todavia, o destino do pensamento da finitude parece ter sido o da colisão com a realidade: propondo um modo todo especial de se relacionar com o tempo, um modo todo especial de habitar, o pensamento da finitude não tem lá muita chance de medrar ou florir no mundo que é o nosso, terminando por ser matéria de apreciação de algumas poucas almas que se refugiam nos livros para sonhar com o que poderia ser mas não é.
Embora o único filósofo citado em Ao caminhar… seja Nietzsche, Mekas parece ter uma compreensão do sentido muito especial do “perto” heideggeriano lembrado por Fell. Mergulhado na composição de seu filme, Mekas faz declarações que denotam claramente uma compreensão muito especial do que seja o tempo.
“A vida continua... A vida continua... E o que é importante para mim pode ser totalmente sem importância para você, totalmente sem importância para você... Embora tudo eventualmente passe, exceto este, este exato momento, e no próximo segundo nós estamos em outro momento e alguma outra coisa acontece e todo o resto se foi, é passado, é memória, é memória. Mas algumas das memórias... não, elas nunca desaparecem. Nada realmente vai embora, está sempre aqui, e às vezes possui você, e é mais forte do que qualquer realidade ao seu redor, ao meu redor, agora. Isso é... realidade. Isso é real. Isso é realmente real, embora não esteja mais aqui, como dizem, não está mais aqui. Mas está aqui para mim, está aqui e agora.”
No pensamento da finitude, o passado não é um já-não-mais nem o futuro é um ainda-não. Esse jeito de pensar é o da metafísica, na qual só existe o presente como ponto sem dimensão no qual o futuro escoa, sem sentido, para o passado. É nesse sentido que o mero presente do aqui-e-agora se torna apenas um nada, que só encontra sua redenção se puder ficar pendurado no zênite da eternidade. O pensamento da finitude corta o fio no qual o mundo da finitude ficava pendurado no firmamento da plenitude. Porém, o corte desse fio não faz com que o mundo da finitude despenque no abismo, no nada. Pelo contrário: o sentido e a beleza, até então contidos nos céus inteligíveis, se derramam sobre o ordinário agora então, enfim, reconhecido como originário. Quando isso acontece, estamos no horizonte da possibilidade de reconhecer, como Mekas, fragmentos de Paraíso:
“Sem saber, sem saber, carregamos… cada um de nós… carregamos conosco em algum lugar profundo, algumas imagens do Paraíso. Talvez não ‘imagens’... alguma sensação vaga, vaga, de onde estivemos em algum lugar... Há lugares, há lugares em que nos encontramos em nossas vidas. Já estive em lugares onde senti, ah, isto deve ser como o Paraíso, isto é o Paraíso, ou algo parecido. Um pequeno fragmento do Paraíso. Não só os lugares… estive com amigos. Estivemos juntos, meus amigos, muitas vezes, e sentimos algum tipo de união, algo especial, e ficamos exultantes e nos sentimos, ah, nos sentimos como se estivéssemos no Paraíso.”
Eu tento manter, nessas traduções livres, o tom vacilante de um Mekas que, com seus 78 anos, não está buscando nem tentando oferecer explicações para o que viveu. Levantando muitas perguntas ao longo das quase cinco horas de filme, Mekas não está perseguindo suas respostas. Está, pelo contrário, saboreando o maravilhamento que suscita essas perguntas. Essas questões vivas e que traduzem um tão genuíno quanto raro maravilhamento com a própria existência e com a existência das coisas não busca explicações porque, conforme admite Mekas, ele nunca viveu “no assim chamado mundo real”, mas no seu próprio “mundo imaginário”, do mesmíssimo modo que cada um de nós, seus espectadores, também vivemos em nossos mundos imaginários — mesmo que nossos mundos imaginários sejam tão frequentemente empobrecidos, ingenuamente realistas e desnecessariamente caracterizados por aflitas preocupações com um presente concebido de forma meio torta.
Nesse horizonte de confusão entre passado e presente, entre realidade e imaginação, Mekas declara que nem sequer é um cineasta, preferindo se ver como um filmador, obcecado em filmar, em guardar. Um guardador, portanto. Um guardador que não precisa de explicações nem de narrativas para que os fragmentos de paraíso por ele capturados cintilem com beleza e com felicidade. O tom vacilante de Mekas, eu desconfio, tem a ver com o fato de que as quase cinco horas de Ao caminhar… são quase cinco horas de êxtase, de um êxtase de maravilhamento e de uma gratidão que de certo modo podem ser despertadas e comparecer, de modo mais diluído e constante, no tão originário âmbito do cotidiano ordinário. O final do filme é quase um êxtase dentro do êxtase: Mekas toca sua gaita e canta o fato de que não sabe absolutamente nada sobre o que é a vida, sobre de onde veio, sobre para onde vai, mas que viu felicidade e beleza, momentos de felicidade e beleza, lampejos de felicidade e beleza.
Longe de mim sugerir que o filme de Mekas serve para “ilustrar” a filosofia de Heidegger que, por sua vez, o “explicaria”. Muito antes disso, acho que o texto de Heidegger e o filme de Mekas é que apontam para uma beleza obscenamente esquecida porque está já-sempre obscenamente perto, obscenamente dissimulada até o despertar de uma sensibilidade especial. A relação de Mekas com suas filmagens, suas memórias e seu passado, e o conceito de tempo do pensamento da finitude de Heidegger indicam um caminho, um modo, um jeito de estar de modo menos torpe no tempo, um jeito no qual a gente, podendo (eu não esqueci que vivemos em um mundo material, por supuesto) não precisaria — no qual a gente, podendo, deixaria de precisar — ficar insulado em um presente aflito, ansioso pelo ainda-não e lastimoso pelo já-não-mais. Talvez seja coincidência, talvez não seja, mas tanto o texto de Fell que vai na foto acima quanto um livro de Heidegger que comprei há mais de dez anos e que só agora estou lendo mencionam essa coisa do despertar uma certa sintonia, uma certa atmosfera afetiva, uma certa sensibilidade muito especial. Nesse sentido, eu acho que o filme de Mekas é um dos filmes mais bonitos que já vi, uma das obras de arte mais encantadoras que já vi, uma das coisas mais bonitas que já vi, um monumento erguido à própria beleza. Uma beleza que, infelizmente, escapa das nossas antenas, frequentemente sintonizadas na frequência das preocupações.
Já não andamos com câmeras digitais porque nossos smartphones cumprem mais e melhor as funções das antigas câmeras. Hoje, de certo modo, todos poderíamos fazer algo “parecido” com o realizado por Mekas. Reconheço, como já falei por aqui, que não tenho essa sensibilidade cinematográfica e fotográfica. Se tenho alguma, é para e com as palavras. Mesmo assim, a despeito do meio distinto, tenho o hábito — ou a mania — de guardar o que vivo, mesmo que dessa maneira tão codificada que é registrando o que penso. No horizonte de uma experiência da boa finitude — isto é, aquela que não é a pura tristeza do finito, tristeza diante do fato metafísico de que tudo passa, metafísica feita de desejo de vingança contra o tempo —, não vejo nada mais próprio ao nosso existir do que guardar e aguardar lampejos de beleza. Eu aguardei por esse filme sem saber. Aguardei por por seus lampejos de beleza e pelas palavras de um cineasta de 78 anos, nas quais me encontro e me reconheço mesmo 40 anos mais jovem. Há um horizonte para o qual apontam (o) Heidegger (de Fell — e, portanto, talvez menos Heidegger do que Fell, mas deixemos isso pra lá) e Mekas, e é para ele que eu quero apontar também, somando meus humildes gestos aos deles.
Considerando que em 8 de março vai fazer 20 anos que entrei em uma sala de aula de uma faculdade de filosofia pela primeira vez, acho que se alguém me perguntasse hoje sobre a coisa mais importante que aprendi nesse percurso, eu diria isso: aprendi a guardar e aguardar por lampejos de beleza, lampejos que são o mais perto que se pode chegar do que seriam razões suficientes de uma existência finita, de uma finitude feliz. Aconteça o que me aconteça — e faça eu o que eu fizer ou não fizer com meus diplomas em filosofia —, esse percurso me proporcionou uma sensibilidade especial por meio da qual o próprio percurso hoje me aparece. Para citar as palavras de Mekas uma última vez, “eu não sei o que é a vida. […] Eu não sei de onde eu vim, para onde eu vou. […] Eu não sei onde estou! Mas eu sei que experimentei alguns momentos de beleza, momentos breves de beleza e felicidade, quando eu caminhava, meus amigos! Eu experimentei, eu sei, eu sei que experimente alguns breves, breves momentos de beleza! Meus amigos! Meus amigos!”.