Jean-Paul Sartre faria 120 anos hoje. Faria, mas faleceu em 15 de abril de 1980, aos 74 anos.
É difícil imaginar Sartre vivendo até os 120 anos. Gadamer viveu até os 102, mas sua persona se confundia com uma certa materialização das tradições e do passado que exortava. O mesmo vale para MacIntyre, que nos deixou recentemente, aos 96 anos. Sartre, aos 74, já estava fisicamente bastante debilitado há quase 10. É difícil imaginar para onde teria ido seu pensamento, nos anos 80: desde 1974, o filósofo era tutelado por um “secretário”, chamado Benny Lévy (não confundir com Bernard-Henri Lévy, controverso autor de uma biografia mui impressionista sobre Sartre), que o teria levado a dizer cousas que o filósofo jamais diria se não estivesse, justamente, debilitado. Cousas que algumas pessoas, profissionais em filosofia, não gostam que sejam citadas nos papers. Em suas últimas entrevistas, Sartre teria não só se aproximado de esperanças messiânicas — mais típicas do pensamento de Lévinas do que da filosofia da existência, pois — como disse que jamais sentiu angústia, desespero, essas coisas noir que constituíam o charme desencantado do existencialismo. Curiosamente, no Diário de uma guerra estranha, redigido entre 1939 e 1940, Sartre já parecia dizer coisas desagradáveis para a glosa especializada: não apenas confessava que não era autêntico como, mais do que isso, que não sentira a célebre náusea que explorara em seu romance. Eis as palavras do próprio Sartre:
“É verdade, não sou autêntico. Tudo o que sinto, antes mesmo de sentir, sei que o sinto. E, então, sinto apenas pela metade, absorvido que estou em definir meu sentimento e pensar sobre ele. Minhas maiores paixões não passam de movimentos de nervos. O resto do tempo, sinto às pressas e depois traduzo em palavras, aperto um pouco daqui, forço um pouco dali, e surge a sensação exemplar, digna de um livro encadernado. Tudo o que os homens sentem posso adivinhar, explicar, transformar em palavras. Mas não sentir. Crio uma ilusão, pareço uma pessoa sensível e sou um deserto. Mas quando considero meu destino, ele não me parece tão desprezível: é como se tivesse à minha frente uma porção de terras prometidas nas quais nunca entrarei. Não senti a Náusea, não sou autêntico, parei à porta das terras prometidas. Mas mostro o caminho para que outros possam entrar. Sou o indicador, esse o meu papel. Parece-me que neste momento utilizo-me da parte mais essencial de minha estrutura, dessa espécie de amargura desolada de me ver sentir e me ver sofrer, não para conhecer a mim mesmo, mas para conhecer todas as ‘naturezas’, o sofrimento, a alegria, o ser-no-mundo. É o meu eu, esta reduplicação contínua e reflexiva, esta precipitação ávida de tirar partido de mim mesmo, este cuidado. Sei muito bem — e muitas vezes sinto-me cansado disso. […] Além disso de tempos em tempos, gozo os prazeres inocentes da alma pura, prazeres logo identificados, descobertos, transformados em palavras, espalhados na minha correspondência. Sou todo orgulho e lucidez.”
Se apropriando da fenomenologia husserliana, Sartre dava sinais do modo pelo qual compreendia a relação entre vivência e reflexão: se de saída e na maioria das vezes a consciência está imersa — ou submersa — nos ambientes e circunstâncias que se lhe dão, às vezes ela pode, como em uma projeção astral, tomar certa distância dessa instância que vive em adesão e proximidade com o mundo e suas cousas. Acho que Gerd Bornheim, em Introdução ao filosofar, é suavemente mais preciso do que o próprio Sartre ao enfatizar que é a distância a si, e não tanto a presença a si, que caracteriza a experiência humana. As duas palavras, é verdade, apontam para o mesmo fato: a coincidência a si é a forma impossível e permanentemente desejada pela experiência humana que, condenada à liberdade separação, nunca está plenamente onde está, restando sempre com um pedacinho de si mesma em outro lugar. “Se bastasse conceber para realizar, estaria eu mergulhado em um mundo semelhante ao do sonho, no qual o possível não se distingue de forma alguma do real”, diz Sartre, em O ser e o nada, acrescentando que “ficaria condenado, então, a ver o mundo se modificar segundo os caprichos das alterações de minha consciência, e não poderia praticar, em relação à minha concepção, a ‘colocação entre parênteses’ e a suspensão de juízo que irão distinguir uma simples ficção de uma escolha real” já que “aparecendo desde o momento em que é simplesmente concebido, o objeto não seria nem escolhido nem desejado”. Quem assistiu Vanilla sky pode lembrar de uma parte do filme em que, de certo modo, é ilustrado o tipo de experiência que se daria além da resistência do real, com um coeficiente de adversidade zero (spoiler alert): conservado por criogenia, David Aames era mantido vivo em um estado de sonho contínuo, no qual absolutamente tudo se passava do modo que ele desejava. Se sofrera um acidente no qual ficara desfigurado, David era presenteado com uma proposta de tratamento revolucionário no qual seu rosto era restaurado. Se o acidente o levara a perder um amor pelo qual ficara obcecado, esse amor reaparecia em sua vida, em uma atitude de extremo companheirismo e em uma atmosfera de irretocável apaixonamento. É, penso, com esse sonho que a experiência sonha, com esses ambientes de resistência quase nula, ambientes maravilhosamente indicados pela passagem em que Schopenhauer fala da “terra de abundância, onde tudo crescesse espontaneamente e os pombos assados voassem ao redor, onde cada um encontrasse e obtivesse facilmente seu amado”. O paraíso, portanto, é um contínuo de ambientes em que os pombos já revoam assados. Esse mínimo, esse zero de insatisfação, desconforto e desagrado, por supuesto, interditaria qualquer ocasião de amplificação do distanciamento de si que constitui a experiência ordinária.
(Evidentemente, David não sabia que sonhava — afinal, que genuína satisfação haveria em viver em um simulacro projetado desde si mesmo e para si mesmo?)
Sartre, por sua vez, por seu temperamento, por sua constituição individual, sempre foi um overthinker. Se a tomada de distância reflexiva é algo intermitente, descontínuo, ocasional, se tem pessoas que parecem passar uma vida inteira sem ser assaltadas por uma unidade de pensamento reflexivo, Sartre parece ter vivido com uma cabeça na qual havia um perpétuo vazamento, uma torneira pingando, como naquele método de tortura. A autenticidade — que, para o Sartre de 1939, 1940, se confundia com uma espontaneidade imersa nos ambientes, com certa naturalidade e desenvoltura sem as quais a graça é impossível —, portanto, era permanentemente interditada pela reincidência da reflexão permanentemente intermitente. Certamente isso demandaria estudos mais empíricos em psicologia experimental (que, evidentemente, já devem existir e que, para minha sorte, por já estarem sendo realizados, me libertam do dever de me envolver com eles), mas é o caso de nos perguntarmos se Sartre não era um tipo de pessoa que vivia mais tempo em “projeção astral” (isso é uma metáfora, ok?) do que encarnado no mundo. A alma cai no mundo, dizia o professor Noeli Rossatto, indicando um esquema que servia para explicar o platonismo e o neoplatonismo que, segundo Bornheim, impregna a metafísica existencialista de Sartre. Caída, a alma só quer voltar para o lugar de onde caiu. Todavia, na metafísica existencialista, esse lugar nunca existiu, já que o existencialismo é, em certo sentido, um ateísmo metodológico. Se o cristianismo e o gnosticismo concordam que estamos no mundo, mas não somos do mundo, a metafísica existencialista é um convite para a tomada de consciência do desterro radical, do acosmismo radical, da falta radical de domicílio para a existência. Aliás, nisso a metafísica existencialista é perpassada por temas mui cristãos: desterrada, a existência pós-Deus parece ter um dever masoquista para consigo própria, uma obrigação de se martirizar e recuperar o desconforto que nos salva do pecado capital da má-fé. É o que parece admitir Sartre, em 1963, em As palavras — livro que lhe rendeu um Nobel que, de modo resolutamente masoquista, Sartre recusou:
“Mudei. Contarei mais tarde que ácidos roeram as transparências deformantes que me envolviam, quando e como efetuei o aprendizado da violência e descobri minha feiura — que foi durante muito tempo meu princípio negativo, a cal viva em que a criança maravilhosa se dissolvera —, por que razão fui conduzido a pensar sistematicamente contra mim mesmo, a ponto de medir a evidência de uma ideia pelo desprazer que ela me causava. A ilusão retrospectiva está reduzida a migalhas; martírio, salvação, imortalidade, tudo se deteriora, o edifício cai em ruínas, catei o Espírito Santo nas caves e o expulsei delas; o ateísmo é uma empresa cruel e de longo fôlego: creio tê-la levado até o fim. Vejo, claro, estou desenganado, conheço minhas verdadeiras tarefas, mereço seguramente um prêmio de civismo; há quase dez anos sou um homem que desperta, curado de longa, amarga e mansa loucura, e que está perplexo e que não consegue lembrar-se, sem rir, de seus antigos erros, e que não mais sabe o que fazer de sua vida. Voltei a ser o viajante sem passagem que eu era aos sete anos: o condutor entrou no meu compartimento, ele me fita, menos severo que outrora: na realidade, só deseja ir-se embora, deixar-me concluir a viagem em paz; basta que eu lhe dê uma desculpa válida, não importa qual, ele a aceitará. Infelizmente não acho nenhuma e, aliás, não tenho mesmo vontade de procurá-la: ficaremos a sós um com o outro, no mal-estar, até Dijon, onde bem sei que ninguém me espera.”
É só na má-fé que alguém pode achar que tem um bilhete, que tem direito de estar no bonde da existência, que foi eleito para um lugar no qual está ou deveria estar. Na metafísica existencialista, a evidência se mede pelo desprazer, mais ou menos como no começo daquela conversa entre Antônio Abujamra e Clodovil Hernandes: “como vai?”, “mal, e você?”, “eu estou ótimo!”, “aproveite porque passa!”, porque é mentira, ilusão, má-fé. Você não está ótimo, você só está confuso.
O existencialismo enquanto ateísmo metodológico é algo que aponta para um tema razoavelmente conhecido do pensamento filosófico: para onde vai o pensamento que tematiza condições de possibilidade? Em outras palavras, se é possível acreditar que Heidegger, desde o §45 de Ser e tempo, repete, retoma e novamente recita as análises existenciais do ponto de vista da autenticidade, é necessário assumir que “Heidegger se singularizou”, conforme costuma dizer o professor Marco Casanova, que ele conseguiu se distanciar do ordinário e se instalar no originário para, pelo pensamento adequadamente conduzido, descrever o que se vê de lá. Transpondo esse esquema para o pensamento de Sartre, tudo se passa como se este, saindo do mundo no qual se está de saída e na maioria das vezes imerso, se instalasse numa estratosfera originária desde a qual a evidência de uma estrutura existencial dependesse do desagrado envolvido em percebê-la, reconhecê-la, compreendê-la. “É preciso ver os homens do alto”, diz o protagonista de Erostrato, conto de Sartre que vai na coletânea O muro. Do alto, Sartre viu que a contingência da identidade pessoal só pode ser evidente na angústia, que a contingência radical de tudo o que é só pode ser evidente na náusea. Estabelecendo as bases de uma espiritualidade que ele próprio parecia se sentir incapaz de praticar, Sartre, de certo modo, parece ter extraído as consequências dramáticas de um cartesianismo que, nos manuais de história da filosofia, parece só ter preocupações epistemológicas e intelectuais. Uma gnose sombria, para usar uma expressão de Sloterdijk, por meio da qual só o que parece interessante e pertinente é o reconhecimento da impossibilidade da reinstalação, da reencarnação, do retorno ao mundo. A coisa pensante, angustiada, flutua em insustentável leveza — desliza, como se esquiasse, dirá Sartre n’O ser e o nada —, sobre a coisa material, sem que seus pés jamais voltem a pisar sobre o chão como outrora pisaram.
Evidentemente, quem conhece o pensamento filosófico e político de Sartre pode, tendo chegado até aqui, considerar monstruosa a ponderação que estou fazendo. Sartre não só era um pensador do engajamento, mas um pensador engajado. Sartre subia em caixotes, fazia uso de megafones, escrevia prefácios para Fanon, tomava partido nas lutas anticoloniais, atentava para o que se passava na União Soviética, etc. Concordo plenamente e acho isso interessantíssimo se — e somente se — isso for tema de abordagens estritamente históricas. Há trabalhos maravilhosos nesse sentido e Sartre, de certo modo, é um objeto que serve como tutorial para o treinamento de alguém em história intelectual, em sociologia dos intelectuais (The existentialist moment, de Patrick Baert, é um trabalho paradigmático e encantador nesse sentido). Nessa perspectiva, tanto O ser e o nada quanto A conferência de Araraquara são documentos históricos, da história do pensamento. Quanto ao suposto e supostamente positivo valor político do engajamento do pensador, eu prefiro, obsequiosamente, suspender o meu juízo e me limitar a dizer que me parece que o desejo de admirar escritores, pensadores, artistas, etc, é mais um sintoma de um tempo pós-Deus em que já não dispomos de modelos de santidade ou mesmo de sabedoria. Acho que boa parte da valorização de certas obras filosóficas, artísticas, etc, está enraizada nesse desejo de admirar boas pessoas. E acho que isso é uma baita fria.
Aliás, se passei muitos anos imerso nas páginas de O ser e o nada, fazendo comigo algo parecido com o que Leonid Rogozov teve de fazer em si mesmo, trocando partes de minha alma por partes de um texto de filosofia, removendo alguns apêndices inflamados que me sobravam, instalando asas e garras conceituais que eu achava que ficariam bem em mim, hoje, com a graça do acaso, consigo ver esse livro com certa distância. Como não tenho treinamento para fazer história ou sociologia intelectual, tenho a impressão que dá pra ler O ser e o nada como um capítulo inesperado — meio indesejado, quase indesejável — da história das ideias, tal como essa metodologia foi concebida e esboçada por Arthur Lovejoy. É assim que meus intérpretes preferidos de Sartre parecem compreende-lo, também: embora baseados em Heidegger, e não em Lovejoy, Gerd Bornheim e Joseph Fell mostram como O ser e o nada está impregnado de temas imortais da história da filosofia. Em uma história de 25 séculos, o pensamento de Sartre, que não tem nem sequer um, ainda está quentinho, como que recentemente saído do forno, rico de elementos que — depois de vinte anos enfiado em philosophy stuff, arrisco pensar que — sobrevivem à rapsódia das modas.
Sartre faria 120 anos hoje. Então, a despeito de toda e qualquer relação interna entre evidência e desprazer, do caráter sombrio da gnose proporcionada pela metafísica existencialista, é dia de festa, pois seria aniversário desse médium que ouviu a sabedoria imortal da história da metafísica e que emprestou sua mão e sua pena para redigir um inesperado capítulo dessa história, um capítulo cheio de charme noir e que transcende o homem, que não se confunde com a pessoa, com o autor, com o ser humano que o registrou em palavras. Quero encerrar esse texto com palavras um pouco frívolas de um frívolo Bernard-Henri Lévy — autor, aliás, completamente imune aos nossos aflitos desejos de admirar pessoas:
“Gosto dessa alegria sartriana. Gosto dessa ideia de que a filosofia não está em antinomia com uma alegria, ora feliz, ora feroz. Gosto dessa imagem do grande filósofo, gracejador, frívolo, sempre pronto a uma graça, uma desordem, uma comédia, um relato grotesco ou truculento, uma palhaçada, uma paródia, um boato especulativo.”
Eu também gosto.
Ótimo texto!
Também gosto!