“Embora tenhamos mais informação empírica à nossa disposição, não temos mentes diferentes ou melhores; e, apesar de tudo, é a ação da mente sobre os fatos que produz a filosofia e a ciência — e que, certamente, em grande medida produz também os ‘fatos’.”
— Arthur Lovejoy, A grande cadeia do ser
Meu exemplar d’A grande cadeia do ser foi um presente. Salvo melhor engano, recebi ele em mãos no ano de 2010, quando eu começava meu mestrado. Não foi um presente embrulhado em papel. Pelo contrário, já chegou com um ou outro risquinho, um ou outro sublinhado. O indivíduo que me presenteou com esse livro era um sujeito da minha idade, mas que começava então a faculdade de história. Um pouco mais velho que seus colegas, o sujeito já tinha uma certa formação que, de lá para cá, ficou bem mais comum, a saber, aquela que era oferecida por um certo bonzo em um certo curso on-line. Não sei se o bonzo mencionava Lovejoy em seu curso on-line. A alegação do sujeito que me deu o livro foi a de que chegou até A grande cadeia do ser buscando um jeito de fazer historiografia que não fosse marxista. Provavelmente o sujeito, depois das primeiras vinte páginas de considerações metodológicas, achou meio estranho — e pouco historiográfico — o conteúdo propriamente dito do livro, já que de certo modo a tal da história das ideias parecia depender muito de uma significativa familiaridade com os clássicos da filosofia e das letras. Faço essa suposição por minha conta e risco, assumindo que é assim que me parece que Lovejoy pode ser lido por um estudante de história: para ser uma pedrada como A grande cadeia do ser, um livro de história das ideias parece depender de que seu autor seja como era Lovejoy na época de sua publicação, isto é, alguém já com seus sessenta anos e intelectualmente apto para fazer o balanço interpretativo de uma erudição cultivada ao longo de décadas. Não digo mais nada sobre isso para não falar bobagem porque, a rigor, nem sei se de fato eu consigo me sintonizar na rádio historiográfica, por mais que às vezes eu tente. Uma formação intelectual específica define uma certa musculatura em detrimento de outra, convenhamos, e cada campo disciplinar parece exigir e depender de uma intencionalidade específica. Eu, infelizmente, transformo em filosofia tudo aquilo em que encosto, sejam os textos historiográficos ou as narrativas de ficção (e não é casual, evidentemente, minha predileção por história das ideias ou conceitos, bem como por romances mais ensaísticos do que narrativos).
Entretanto, se é como filosofia que leio até uma bula de remédio, temos sempre de lembrar que filosofia, como o amor, é uma coisa que se faz de muitos modos. Eu, particularmente, dependo de um jeitão histórico de enquadrar a filosofia. Mesmo que esse jeitão histórico não seja lá muito historiográfico — isto é, não se pareça com o que fazem os historiadores profissionais em seu ofício hoje em dia —, a coisa tem que ter, digamos, uma moldura narrativa ou não rola. Pode ser o Gadamer, dizendo que a coisa toda é uma grande conversa e que todo lance no campo do discurso é resposta à alguma pergunta explícita ou que parecia estar pairando e pedindo para ser respondida. Pode ser algo mais épico, como a história heideggeriana do ser — ou do seer —, essa gigantomaquia em que forças telúricas jogam entre si ao fundo do cenário em que carregamos baldes, cortamos lenha, lavamos louça e passamos 8 horas por dia no celular. Podem ser as versões light do heideggerianismo, que encontramos em autores BR como Ernildo Stein e Gerd Bornheim — especialmente neste, em que meu querido Sartre ganha uma importância na história da filosofia que raramente se vê lhe sendo atribuída. Certamente pode ser algo como faz Sloterdijk, propondo novas metáforas axiais para reler a história desse ente que pode ser chamado tanto de sapiens sapiens quanto de Dasein. Contudo, um dos meus favoritos nessa coleção é esse sujeito que leva no nome tanto amor quanto brincadeira.
Quando eu falo (e às vezes eu invento motivos para falar) d’A grande cadeia do ser para estudantes de filosofia, eu costumo dizer que Lovejoy inventou e zerou um jogo ao mesmo tempo. Em suma, ele inventa um approach para um certo domínio de objetos e, depois das vinte páginas em que delineia os contornos desse approach, ele ataca diretamente algumas ideias que poderiam ser as mais excelsas nas quais seu approach poderia dar um enquadro. A grande cadeia do ser não é um trabalho historiográfico miudinho, bem delimitado, sobriamente conduzido por um profissional que levanta hipóteses que permanecem discutíveis no final do trabalho. Pelo contrário: o livro de Lovejoy é um magnânimo interpretaço de uma história cujo enredo é estipulado pelo próprio autor que, com uma retórica absolutamente deliciante, passeia por aquilo que de mais nobre foi produzido em termos de pensamento metafísico e especulativo ao longo de dois mil anos. Nesse sentido, A grande cadeia do ser pede por uma sensibilidade que — e aqui não é teoria, é experiência —, na faculdade, a gente aprende (ou deveria aprender) a controlar (caso, evidentemente, tenha a sorte de possuí-la ou de tê-la cultivado). A grande cadeia do ser é um livro do qual a gente sai com a sensação — que frequentemente pode não ser mais do que apenas isso, uma sensação — de compreender melhor as razões em função das quais as coisas estão como estão, mais ou menos como são certos livros de filosofia. Aliás, enquadrando o enquadramento de Lovejoy com o que Richard Rorty faz em um texto chamado Analytic philosophy and narrative philosophy, dá pra dizer que esse livro de história das ideias também pode ser lido como um livro de filosofia narrativa. Para Rorty, enquanto a filosofia analítica tende a cortar os temas de modo sincrônico, a filosofia narrativa — isto é, mais ou menos a mesma coisa que filosofia “continental” — corta os temas diacronicamente. Nesse sentido, ler Hegel ou Heidegger, para Rorty, é ler textos que nos pedem boa vontade e que de certo modo prometem, em seus desfechos, nos revelar coisas importantes sobre o que se passa conosco. Nesse sentido, A grande cadeia do ser é bem assim, e saímos do livro — que não é uma história apenas da filosofia, mas de ideias que também se vestem e revestem de discurso filosófico — com a sensação de que a filosofia foi meio que à bancarrota quando a ideia de que a realidade é um ambiente racional e bom perdeu sua credibilidade. De modo narrativo, pois, Lovejoy tenta mostrar como não dava mais, no século XIX, para perseguir especulativamente essa ideia, pois ela ficara discursivamente e culturalmente — e, portanto, também filosoficamente — insustentável.
Enfim, quero comentar algumas alegações que Lovejoy faz na introdução d’A grande cadeia do ser, introdução intitulada Um estudo da história de uma ideia.
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“O corpo total da doutrina de qualquer filósofo ou escola filosófica é quase sempre um agregado complexo e heterogêneo — e muitas vezes de modo tal que o próprio filósofo não suspeita”, diz Lovejoy, acrescentando logo em seguida que “a aparente novidade de muitos sistemas se deve apenas à novidade na aplicação ou na ordenação dos antigos elementos que os compõem”. Como eu disse, consigo imaginar o quanto esse texto pode ter parecido esquisito para o sujeito que tentou ler esse livro e, desistindo, achou que ele podia ser mais interessante para alguém da filosofia. Afinal, parece ser sobre filosofia (e em grande medida é). Quem não é da filosofia pode ter uma certa dificuldade com a ideia de ideia (quem é da filosofia também pode, por supuesto) e eventualmente achar que Lovejoy está dizendo, como diria Platão, que uma ideia é um ente que existe em um estrato da realidade — mais real que essa imundícia de mundo material, talvez devêssemos acrescentar por fidelidade ao platonismo. É disso que muita gente da filosofia gosta de se ocupar, a saber, do estatuto ontológico dos entes, em seus mais variados tipos. Em 1781, Kant já desconfiava de quem, praticando uma suposta disciplina com “o orgulhoso nome de ontologia”, “se arroga a pretensão de oferecer, em doutrina sistemática, conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si”. Mas o interdito kantiano, mais ou menos como um semáforo, sugere mas não obriga ninguém a parar diante de um sinal vermelho e, portanto, todo mundo continuou à procura da batida perfeita, na qual seria possível aceder ao tal em si das coisas. Acho que não precisamos ler Lovejoy como se ele estivesse apostando na ideia enquanto um ente real que seria parte do mobiliário de um reino mais sutil. Basta que por “ideia” compreendamos uma unidade de sentido que já foi designada por várias palavras e por vários conceitos em diferentes épocas. É isso que vai se juntando em agregados complexos e heterogêneos. A própria ideia de que tudo o que existe está organizando em uma grande cadeia seria, pois, uma unidade de sentido desse tipo. Para quem gosta de ontologia, Lovejoy está quase sugerindo que o design das cousas clamava por ser assim reconhecido e discursivamente elaborado — mas só quase. Para quem gosta de uma historiografia mais social y política, imagino, essa ideia de ideia já é suficientemente culturalista — pouco materialista, quero dizer — para ser considerada passível de manuseio profissional. Seja lá o que for uma ideia, onde ela está? Como ela se deixa reconhecer? Ela depende de uma certa vocação para a paranoia, já que presume que se reconheça um je ne sais quoi que se veste e se reveste das mais diversas formas discursivas?
Sigamos com o texto. Para Lovejoy,
“É nos ingredientes comuns lógicos ou pseudológicos ou afetivos por trás das dissimilaridades de superfície que o historiador de ideias individuais procurará penetrar. […] É nos fatores dinâmicos persistentes, as ideias que produzem efeitos na história do pensamento, que ele está interessado. […] O fator mais significante nessa matéria pode ser não o dogma que certas pessoas proclamam — seja ele simples ou múltiplo em seu significado —, mas os motivos ou razões que as levaram a isso. E motivos ou razões em parte idênticos podem contribuir para a produção de conclusões muito diferentes, e as mesmas conclusões substantivas podem, em períodos distintos ou em mentes diferentes, ser geradas por motivos lógicos completamente distintos ou por outros motivos.”
Quem já leu um pouquinho de e sobre hermenêutica — e sobre a história desta — tende a saber que esta teve de se ver com um passado no qual sua prática era perpassada por uma convicção de gosto mui duvidoso, a saber, a de que dá pra reconstruir os motivos e razões pelas quais alguém escreveu um texto (eu acho que dá, mas nem sempre). Sustentar algo assim é, para hermeneutas do século XX, sugerir que a hermenêutica deve ser capaz de telepatia. Ok, alguns casos da história do pensamento doam o cartão e a senha, e chega a ser divertido ler algumas passagens de Schopenhauer quando dispomos de algumas informações sobre sua condição financeira, sobre sua relação com sua mãe ou sobre quantos alunos ele tinha enquanto, no recinto ao lado, Hegel falava para uma sala lotada. Acho, contudo, que Lovejoy está dizendo bem mais do que eu sugiro ao dizer que a filosofia de Schopenhauer pode ser iluminada por sua biografia. Ele está sugerindo a possibilidade de que certos temas afetivos, que certos motivos e razões simplesmente reencarnam ao longo da história da filosofia, por mais distintas e distantes, no espaço e no tempo, que sejam a Atenas antiga, a Hipona medieval e a Paris do século XX. A despeito de toda diferença de toda situação hermenêutica que pessoas tão diferentes quanto Platão, Agostinho e Sartre experimentaram, deve ser possível, com algum esforço honesto, perceber certos ecos e similitudes do modo como esses pensadores pareciam, por exemplo, pensar — e sentir — a relação da alma ou consciência e o corpo próprio, por exemplo.
Continuando, quando propõe a existência “suposições implícitas ou incompletamente explícitas ou hábitos mentais mais ou menos inconscientes, operando no pensamento de um indivíduo ou de uma geração”, Lovejoy exemplifica citando “a diferença muito importante” entre “mentes que habitualmente tendem a admitir que podem ser encontradas soluções simples para os problemas com que se ocupam”, bem como “aqueles habitualmente sensíveis à complexidade das coisas” e também “naturezas hamletianas que são oprimidas e aterrorizadas pela multiplicidade de considerações que provavelmente pertinentes a qualquer situação”. Gosto muito do exemplo que ele escolhe para ilustrar a tendência a pensar que as coisas tem soluções simples, a saber, o iluminismo. Lovejoy está se aproximando do iluminismo por um viés bastante diferente daquele de Koselleck ou MacIntyre, mas chegando no mesmo lugar, a saber, em certa soberba que perfumava essa convicção de que tudo seria simples, de que bastava a eliminação de umas superstiçõeszinhas aqui e ali e, voilà, sucumbiriam todas as formas culturais caducas. Um historiador de ideias tem de ter sensibilidade para esses padrões de pensamento, me parece. Acho que se me fosse dado o exercício — valendo a nota do semestre — de localizar um padrão atitudinal como esse que Lovejoy menciona no exemplo, eu escolheria falar de coisas como o amor fati nietzscheano, a racionalização freudiana, e o “eu nem queria mesmo!” das crianças são expressões da mesma atitude fundamental, a saber, a de se tentar fazer parecer, inclusive para si mesmo, que as coisas que aconteceram foram precisamente aquelas que foram desejadas. Teria que achar um nome bem bonito para essa atitude. Lovejoy achou great chain of being em um poema de 1734, de autoria de Alexander Pope. Esse tipo de atitude que mencionei provavelmente deve ter um nome fácil de encontrar em alguma frase de La Rochefoucauld.
Lovejoy também chama a atenção para as “diversas espécies de pathos metafísico” — obscurantismo, esoterismo, eternalismo, monismo panteísta, voluntarismo —, expediente muito mais interessante do que a mania, por exemplo, de classificar filosofias e escolas de pensamento por país. Quem quer que, hoje, já tenha lido Koselleck e Hartog, vai suspeitar da alegação de Lovejoy quando este declara que “sem dúvida, no todo, havia mais em comum quanto a ideias fundamentais, gostos e temperamento moral entre um inglês, um francês e um italiano típicos e educados no final do século XVI do que entre um inglês daquele período e um inglês das décadas de 1730, ou de 1830, ou de 1930”. De todo modo, o corte que a história das ideias faz é aquele que permite reconhecer traços comuns em pensadores que dificilmente seriam ajuntados por quaisquer outras razões, já que frequentemente não partilham língua nem época. Quem faz algo muito interessante — e muito gostoso de se ler, nesse sentido — é a dupla André Comte-Sponville e Luc Ferry, em um livro chamado A sabedoria dos modernos. Organizado na forma de uma discussão sobre dez assuntos, A sabedoria… é um diálogo entre Comte-Sponville e Ferry enquanto representantes, respectivamente, de um imanentismo naturalista e de um voluntarismo humanista, algo assim. Os autores não apenas se colocam na posição de procuradores das tradições que representam mas, mais do que isso, por supuesto, estipulam quais são os membros dessas perspectivas por eles estabelecidas e propostas.
Por fim, Lovejoy reconhece — antevê, eu diria — um perigo, a saber, o de que “por visar à interpretação e à unificação e por buscar correlacionar coisas que, com frequência, na superfície não parecem relacionadas” a história das ideias possa parecer mera “generalização histórica meramente imaginativa”. Para o autor, “a história das ideias não é, portanto, um assunto para mentes altamente compartimentadas; e ela é acompanhada com alguma dificuldade numa era de mentes compartimentadas”. Em todos esses anos nessa indústria vital, aprendi que o campo filosófico tem uma desconfiança congênita com textos bem escritos. Boa retórica está frequentemente associada com o caráter ralo da densidade do conteúdo do que é dito. Hermeneutas como Gadamer e Ricoeur gastaram muita tinta fazendo o que provisoriamente chamarei de defesas suaves dos expedientes, digamos assim, menos assertóricos da linguagem, como a retórica. Mas mesmo estes hermeneutas estão em um campo de defesa desses expedientes menos assertóricos, um campo mais de defesa do que de uso propriamente dito dos recursos retóricos. Enquanto exemplo de um approach histórico (e talvez hermenêutico, nesse meu sentido assumidamente inflacionado de “hermenêutica), A grande cadeia do ser me encoraja a desconfiar das minhas desconfianças e apostar na eventual validade do discurso mais baseado no reconhecimento de padrões, similitudes, afinidades eletiva y semelhanças de família, mesmo que meu ofício, a rigor, só exija de mim a competência analítica proporcionada por uma alta compartimentalização do pensamento.