Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir
Na religião das palavras e da finitude da existência, nada pode ser maior do que Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir
O ano de 2024 ainda está, de certo modo, em seu começo. Todavia, nesses ainda poucos meses deste ano eu vi duas das coisas mais impressionantes que provavelmente terei visto na vida. Eu vi a cordilheira dos Andes e vi Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir.
A despeito dos Picassos falsos da memória, que me levam a ter imagens supostamente precisas da época em que lembro ter sabido da notícia pela primeira vez, sei que já se vão quase 15 anos desde que Fernanda Montenegro começou a viver e mostrar Simone de Beauvoir nos palcos. Há 15 anos eu estava subindo a ladeira dos meus vinte e poucos anos e da minha jornada de pesquisa em filosofia. Leitor de Sartre, naturalmente me tornei também leitor de Beauvoir — e, como é comum nesse universo, de biografias sobre Beauvoir e Sartre. Lembro da dupla sensação de ver as notícias sobre a peça de Fernanda Montenegro e ter a sensação de que era muito adequado o que a atriz, ainda por entrar na ladeira dos seus oitenta anos, estava por realizar. A outra sensação, mais diáfana, era algo da ordem do que muito comumente sente a gente que nasceu e cresceu nos bairros e vilas das cidades do interior do sul do Brasil, longe demais das capitais, especialmente as capitais do sudeste, onde parece acontecer tudo o que acontece. Eu diria que essa sensação é algo da ordem de uma resignação que nem se reconhece como tal, porque é vivida de modo muito natural. Os grandes eventos ocorrem, a gente sabe deles pela mídia e é isso. Todavia, na noite de ontem, lá estava eu, no final da ladeira dos trinta e tantos anos, enquanto Fernanda Montenegro subia a ladeira dos seus noventa e se apresentava, sozinha, em um palco com uma mesa, uma cadeira, algumas folhas de papel e só. Lá estava eu, depois de 15 anos de apaixonada dedicação ao existencialismo, vendo algo que não pode ser superado. Em certo sentido, acho que para alguém que ama os livros e tem predileção por aqueles que tratam da “existência” e tenha nascido no Brasil, nada pode ser maior do que Fernanda Montenegro lendo passagens de Simone de Beauvoir.
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Quando eu era um pré-adolescente e a vida começava a clamar pelo preenchimento biográfico de uma intencionalidade quase vazia de acontecimentos mas cheia de “sentimento de aventura”, me dei conta que eu, às vezes, me esquecia de viver o momento. Essa fórmula era minha tentativa ingênua de designar a possibilidade de viver de modo atento ou desatento aquilo que se me apresentava. A expressão, pois, tinha algo de imperativo (que tomo a liberdade de reformular): viver o momento é preciso, viver não é preciso. Apenas viver, no sentido benjaminiano de ter vivências porque, afinal, se está vivo, não é algo que “se paga” nem que “se justifica”. Apenas viver é absurdo. O que faz a vida se pagar e se justificar é estar vivo na vida, atento, consciente, prestando atenção. “É preciso estar atento e forte”, como cantou a poetisa. O tempo passou, eu li muitas coisas, desli algumas outras e lembro que em março de 2014, encontrei uma amiga (que, vejam só, não só leu muitos livros de Beauvoir como também, conforme já teve de concordar comigo, se parece muito com Fernanda Montenegro quando esta tinha sua idade) na sala do diretório acadêmico da filosofia. Era meu primeiro dia no doutorado em filosofia. Ela me perguntou o que eu estava sentindo. Muito espontaneamente, respondi que estava sentindo que logo acabaria, que só faltavam quatro anos para acabar aquela delícia que era estar ali, de novo, estudando filosofia.
(Um anjo torto deve ter passado do nosso lado nessa hora, vale dizer, pois levei não quatro, mas sete anos para terminar o doutorado — o que não altera em nada a legitimidade do sentimento experimentado naquele março de 2014, por supuesto…)
Jovem e adulto, portanto, eu sentia a necessidade de saborear o tempo que impiedosamente escoa, deixando atrás de nosso perpétuo presente uma cauda de cometa de memórias, uma rapsódia de cenas que a gente pode reter ou deixar esmaecer até que se dissipem no esquecimento, no nada. Viver o momento é preciso porque os segmentos de tempo se oferecem para nós de um modo que tudo se passa como se clamassem que os guardássemos.
Faz algum pouco tempo que eu aprendi que esses truques mentais que eu descobri por acaso têm nome. Dá pra chamá-las de antropotécnicas ou, de modo talvez mais preciso e (consequentemente) menos bonito, psico-antropotécnicas. É possível cultivar esses hábitos e transformá-los em truques mentais ou, em uma expressão mais bonita, exercícios espirituais. Nessa segunda formulação, a coisa se harmoniza com algo sobre o que falei com um amigo sexta-feira, a saber, sobre um certo modo meio religioso de lidar com a filosofia. Não estou falando de usar a filosofia para pensar fenômenos religiosos. Estou falando, de modo bem grosso, de colocar a filosofia no lugar (vazio) em que algumas pessoas colocam a religião. Já falei disso tudo por aqui quando falei da fenomenologia como um tipo muito especial de testemunho e do texto filosófico como um tipo muito especial de confissão. Nesse sentido, esses exercícios espirituais existenciais podem muito bem caber em um modo filosófico de viver, isto é, em um modo mais denso de experimentar a insustentável leveza de ser, em um modo mais intenso de participar da maravilhosa festa para a qual estamos todos aqui reunidos. Considerando que, como diz Sartre, nossa vida nada mais é do que uma longa espera, uma longa espera de esperas que esperam esperas, tenho a sensação de que o encaixe da filosofia em um lugar que era para ser da religião — mas que por muito tempo esteve vazio — é, por exemplo, a saída da jaula da espera ansiosa para os prados nos quais se saboreia a espera enquanto espera. Mas volto a isso depois. Primeiro, quero enfatizar que me parece que para um convertido ao religioso humanismo secular e existencial, é difícil imaginar algo maior do que Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir.
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Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir. Repito a fórmula porque ela parece adequada, justa e justificada como uma necessidade existencial, um destino que se forma em uma realidade toda inteira feita de contingência. Fernanda Montenegro não precisava existir, Simone de Beauvoir não precisava existir, a vida inteligente no universo não precisava existir, o universo não precisava existir. Dado que tudo isso existe, porém, parece absolutamente necessário, absolutamente adequado e justo que Fernanda Montenegro leia Simone de Beauvoir.
São oito e meia da noite de um sábado e eu estou preparado. Espiritualmente preparado, existencialmente preparado. Eu sei, com uma cartesiana certeza, que não há a menor possibilidade de que, quando as cortinas se abrirem, não seja épico, grandiloquente e magnânimo o que vai então ali se passar. As cortinas se abrem. Lá está a atriz, com seus cabelos brancos e sua roupa preta. Todos se levantam em reverência. Como não poderia deixar de ser, seus gestos com as mãos e com a cabeça significam, de forma indubitável, uma discreta recusa daquela solenidade, daquele espírito de seriedade, daquela reverência que ela ao mesmo tempo emana e atrai. Os aplausos começam a cessar e, sem mais delongas, a gente escuta — eu, pela primeira vez — ao vivo aquela voz que tantas e tantas vezes já ouvimos. “A cerimônia do adeus, por Simone de Beauvoir”, ela diz e imediatamente passa a leitura. Em poucos segundos, tudo se transubstanciou: estamos ao mesmo tempo diante de Fernanda Montenegro e de Simone de Beauvoir.
O texto lido pela atriz é uma colagem, em ordem mais ou menos cronológica, de momentos autobiográficos do texto da filósofa. A voz da atriz nos conduz pelas temporadas existenciais da vida de uma filósofa nascida no seio da burguesia francesa do começo do século XX, com tudo o que isso implica e que é bem conhecido de nós que vivemos nos livros em geral e nos dela em particular. Com seus 94 anos, Fernanda Montenegro lê, com sua prosódia inconfundível e imortal, mais ou menos uma hora e meia de texto cheio de entonação, repleto de pausas, entrecortado por olhares, temperado com alívios cômicos e sussurros cheios de magnetismo por meio dos quais controla a atmosfera afetiva na qual mantém imersas centenas de pessoas. Com seus 94 anos, a atriz lê um texto pontuado por muitos e muitos momentos de confissões em que a filósofa falava abertamente de sua sexualidade, confissões que escandalizaram a burguesia conservadora do século passado — e que, desconfio, ainda escandalizam uma burguesia que talvez pareça mais progressista porque sabe disfarçar melhor seu conservadorismo. Envolvidos pelo texto, ouvimos Fernanda de Beauvoir falar das fiestas dos existencialistas na França ocupada pelos alemães, ouvimos Simone Montenegro narrar os primeiros orgasmos de sua vida, nos braços de um escritor ianque, ouvimos a Simone de Fernanda falar da necessidade existencial que foi o amor por Jean-Paul Sartre, vemos Montenegro de Beauvoir, com seus cabelos brancos, falar dos últimos e infinitamente dolorosos dias em que foi necessário se despedir desse amor existencialmente necessário vivido por um par que, segundo palavras duras, não voltaria a se reunir na morte.
Para um praticante da religião das letras e da existência, o percurso pelo texto de Beauvoir na voz de Montenegro deve ser — e pode ser, eu asseguro — qualquer coisa como ver o próprio Papa — a própria Papisa — lendo algumas das passagens mais bonitas desse estranho evangelho. Quando a leitura termina e a fragilíssima quarta parede se ergue, nada termina. As cortinas se fecham, são reabertas e lá está a atriz, com as páginas do texto na mão. O público está em êxtase e eu me pergunto quem foi o cretino que fatiou uma cebola ali por perto, em pleno teatro. Aplaudida, Montenegro, com uma das mãos, ergue as páginas do texto de Beauvoir sobre sua cabeça e, com a outra mão, aponta para as páginas, como se dissesse que é para a filósofa que as palmas devem se destinar. A atriz retoma a palavra e, com a sensibilidade de quem percebe a incandescente importância do prosaico, agradece o público que se deslocou em um trânsito infernal, que pegou fila, etc, apenas para assistir um ser humano ler para outros seres humanos algumas palavras escritas por outro ser humano. Enfatiza que foi isso que aconteceu e que a emociona que isso possa mover tantas pessoas. Não é preciso ser muito sagaz para saber que seu nome e sua presença já são razão suficiente para a lotação total de noites e noites de leitura de texto, e que a filósofa imortal que paira como atmosfera na sala, preenchida pela voz da atriz imortal, é honrada pela leitura que a evoca e a faz presente em 2024, em um sábado qualquer, no Brasil. As palavras da atriz no final da leitura me atingiram em cheio porque eu acho que disse a mesma coisa sexta-feira, para meu amigo, sobre o que é voltar para a sala de aula, depois de mais de meia década afastado dela. Voltar convertido para a sala de aula e falar, em ambiente profissional, sobre páginas e páginas de filosofia é se emprestar, se fazer de expositor, de instrumento e meio para que as palavras se mostrem, para que algumas pessoas possam saborear a beleza e a verdade de algumas palavras ditas e escritas por outras pessoas. Nessa religião da finitude, no lugar do êxtase místico da eternidade transcendente, temos, me parece, a rescendente intensificação da experiência do tempo, a beleza da súbita densidade da vida, os lampejos de beleza que, como frestas, nos devolvem a visão dos fragmentos de paraíso que carregamos conosco, dentro de nós. No lugar da ansiedade — típica da nossa época e especialmente da minha geração — por aquilo que parece que nunca nos chega porque de certo modo nunca começa, temos, me parece, a sensibilidade para o possível e para sua força já nem tão silenciosa para quem com ela se sintonizou. Antes que eu me alongue e fuja ao tema da redação, só quero pontuar que digo que “me parece” porque é até aí que pode ir um apóstolo dessa religião da existência, na qual não há salvação maior do que o simples guardar e mostrar as palavras que restam das experiências vivas e que lhes dão a duração que desafia o fluxo do tempo invencível. É claro que as palavras de Fernanda Montenegro me atingem e caem como que em um caldo cuidadosamente preparado, cheio de um reagente no qual elas estavam destinadas a efervescer em sentido e excesso de sentido. Todavia, ver e ouvir Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir e dizendo que devemos lembrar que, no fundo, o que aconteceu foi só um ser humano lendo palavras escritas por outro ser humano para uma plateia de seres humanos faz com que eu sinta o tentador sentimento de que talvez, em algum sentido, eu esteja fazendo algo “adequado” e “justo” no miudinho da minha existência.
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Se lá por 1999 eu sentia que devia viver o momento e lá por 2014 eu vivia o presente com nostalgia antecipada, em algum momento de 2012 me ocorreu uma dessas ideias que pode talvez ser matéria-prima de exercícios espirituais. Tratava-se de um sentimento meio cinzento, no qual eu me experimentava como que vivendo o epílogo da minha própria vida. Tudo se passava como se tudo já tivesse se passado. A ideia fora disparada por uma reflexão sobre as narrativas nas quais o desfecho — geralmente a morte dos protagonistas, por supuesto — era mostrado antes do final do texto. A leitura das páginas seguintes, nas quais se mostravam os fragmentos de idílio e paraíso vividos pelos protagonistas antes da morte, se tornavam duplamente melancólicas, duplamente doloridas. Nessa época me ocorreu a ideia de que a vida que passa diante dos nossos olhos antes da morte não passa em sequência cronológica, mas em sequência de importância. Como um videoclipe hipercinético dos tempos áureos da MTV, uma ordem de cenas em crescente importância seria exibida, no ecrâ da consciência, nos últimos momentos da existência. Na minha tese de doutorado, mencionei as fiestas existencialistas, narradas pela Beauvoir de Montenegro, como fragmentos de paraíso que apontavam para um outro futuro do existencialismo. Maravilhosas fiestas da insignificância? Certamente. Dignas de aparecer no final do videoclipe que exibisse a história do existencialismo. Mas, também, um futuro que ficou no passado.
Na minha história pessoal, aconteça o que acontecer, uma das últimas cenas do videoclipe da minha vida será, sem sombra de dúvidas, o momento em que vi Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir e dizendo que o que sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor de sua vida, que não desejava nada mais do que viver sem tempos mortos. Para um menino que cresceu preocupado em saborear os momentos e antecipando a nostalgia de tudo aquilo que, ao começar, começava a terminar, nada pode ser maior.