Existem dois tipos de pessoas?
Ou mais? Poderia haver, nesse caso, uma "teoria definitiva da existência"?
Meses atrás, no twitter, apareceu um monte de gente espantada com o fato de que tem gente que escuta uma voz dentro da própria cabeça. Impressionados com o caráter verbal da experiência dos outros, diziam tentar imaginar como seria ter essa voz, esse Verbo Interior, esse narrador verbalizando tudo o tempo inteiro. O espanto dos dos portadores do verbo interior não era menor: como assim tinha gente que não experimentava um “acompanhamento verbal” da sua experiência cotidiana? Como era viver nesse silêncio, nesse vazio, nesse vácuo de verbalização acontecendo dentro da cabeça?
Hoje, também no twitter, algo similar está acontecendo: tem um monte de gente espantada com o fato de que outras pessoas produzem imagens dentro da própria cabeça. Naturalmente, os portadores de imagens também estão espantados com o fato de que tem gente que simplesmente vive em um vácuo imaginativo. Uma imagem ilustrava a postagem na qual um sujeito declarou que nem sabia que experiências do tipo 1 até o tipo 4 existiam:
Quando eu estava redigindo minha tese de doutorado, fiz algo que pretendia ser meramente protocolar (sempre achei um porre a ideia de que filosofar é “argumentar e objetar” e não, antes, falar das coisas e de como elas [me] aparecem), a saber, fui me inteirar das teses contrárias àquelas que eu tentava defender. Como parte da minha tese tentava mostrar certa narratividade como instância intrínseca ao existir enquanto experiência consciente — isto é, o fato de que já experimentamos os eventos ordinários em certo enredo que, mesmo que seja sempre meio aberto, informa a experiência com uma bateria de pressupostos e um horizonte de expectativas sobre seu desenrolar —, achei que seria de bom tom ler um célebre texto que é qualquer coisa como um manifesto antinarrativista. Falo aqui do Against narrativity, de Galen Strawson. No texto, Strawson diz que não só é equivocado mas pernicioso considerar que a experiência consciente se dá desse modo narrativo que eu considerava óbvio. É equivocado porque faz parecer que a narratividade é uma estrutura universal e comum, da qual todos os seres humanos disporiam e participariam. É pernicioso porque nessa métrica, quem não tivesse a mania, o hábito ou mesmo a capacidade de se narrar não seria exatamente humano, e os narrativistas — Paul Ricoeur, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, até Oliver Sacks — estariam excluindo do “conjunto” dos “seres humanos” todo mundo que não fosse um chatérrimo storyteller. Depois de dizer que estes autores falam mais de si próprios do que dos seres humanos em geral, Galen Strawson fala de si próprio e declara que não tem essa “experiência de narrativa”. Se Jacques Lacan disse que uma das coisas que uma psicanálise deve poder restituir para alguém é “a história de uma vida vivida como história”, Galen Strawson parece não ter nem a experiência nem o interesse em sua constituição. O texto todo tem um tom de “eu passo muito bem sem uma história, obrigado”. A ideia de que somos feitos de histórias é, nesse texto, alguma coisa nada menos do que disgusting.
Ainda na tese, me servi da teoria dos regimes de historicidade, de François Hartog. No livro em que a apresenta, Hartog propõe que os tempos modernos — que, para fins didáticos, podem ser grosseiramente pensados como o intervalo de duzentos anos entre a Revolução Francesa, em 1789, e a queda do muro de Berlim, em 1989 — foram tempos em que as sociedades se orientavam para e pelo futuro, pelas utopias e pela ideia de progresso como valor. Antes da modernidade, era o passado que contava e a compreensão geral era a de que tudo se repetia de forma muito parecido com tudo o que já havia acontecido. Todavia, depois da modernidade, só o presente importa. Tudo é presente e os gurus nos ensinam a extrair o poder do agora. Na prática, Hartog fala do presentismo como uma época meio ensandecida, meio zumbificada, na qual as sociedades já não esperam nada do futuro nem se inspiram no passado. A experiência social se consome nas chamas de um presente no qual os hojes se sucedem sem ontens nem amanhãs. Quando li isso, pensei: será que isso não se aplica também para as pessoas? Será que não tem gente que mora mais no futuro, mais no passado ou mais no presente? Se sim, será que uma teoria das personalidades não-narrativas — das personalidades episódicas —, como a proposta por Galen Strawson, não ganha lá sua pertinência se enquadrada enquanto tipo? Afinal, se Hartog está correto e vivemos em uma historicidade presentista, naturalmente esse estado de coisas, como qualquer outro, terá seus ideólogos apaixonados, sejam eles confessos ou não. De repente, tudo me pareceu claro: a teoria das personalidades episódicas era um efeito do presentismo na teoria filosófica sobre identidades pessoais. Gestada na atmosfera da filosofia analítica (célebre por ser — às vezes confessadamente — avessa ao valor de tudo o que é “histórico”), a teoria das personalidades episódicas descrevia um tipo de personalidade, um tipo de relação com o tempo e — para meu próprio assado — com a narratividade transcendental da experiência consciente, digamos assim. Assim como tem gente que se sente representante de tradições às quais pertence (“passadistas”) e gente que só acha que será quem é lá longe, no futuro, no final feliz da própria vida, quando tiver vencido pelos próprios méritos nessa aventura de self made people (“futuristas”), tem gente que apenas está aí, no presente, lavando louça, varrendo o chão, arrumando a cama, passeando com o cachorro, indo no supermercado, jogando um baralho no fim de semana, sem que isso mereça qualquer registro narrativo, sem que isso constitua qualquer história. Bingo! Eu tinha 1) uma armação “transcendental”, oferecida por Hartog, para tipificar relações com a temporalidade e a narratividade, por meio da qual 2) o errante episódico, por mais disperso e distante que estivesse da narratividade estrutural da existência consciente, era um caso ou tipo de relação com essa estrutura estrutural estruturante. Em linguagem didática, demasiado didática, digamos que não é porque o episódico strawsoniano não usa o “aplicativo narratividade” que o aplicativo não esteja lá, instalado, no default setup do sistema existencial. Se, conforme ensinara Ricoeur, o tempo só se torna humano quando posto em narrativa, então é necessário que seja possível, para todo mundo, reconquistar sua própria história de uma vida vivida como história!
Conforme tentei deixar claro no comecinho da tese, ela devia ser encarada como um exercício de hermenêutica. Com isso eu queria me referir ao modo de fazer filosofia que emerge depois do fim da metafísica (da credibilidade científica e, portanto, social da metafísica). Diferentemente de outras posturas teóricas nascidas na mesma época, a hermenêutica nasce com certo molejo, certo jogo de cintura. Mais aberta aos inacabamentos, incertezas e relatividades do saber humano, a hermenêutica permite a construção de hipóteses heurísticas provisórias, transitórias, revisáveis. Considerando que depois de Kierkegaard e Nietzsche aprendemos, de modo literalmente incontornável, que as descrições ontológicas radicam, em última instância, em atitudes diante do mundo e da vida, gosto de pensar que a hermenêutica é qualquer coisa como um lugar sobre o qual a gente constrói nossas moradas ou acampamentos teóricos. Enquanto as moradas ontológicas dependem de compromissos, os acampamentos heurísticos podem ser feitos na base do flerte interpretativo. Digo tudo isso para dizer que é possível produzir textos, como teses e artigos, sem compromisso. O envolvimento convicto com as teses é uma parte do trabalho sem a qual o trabalho permanece tal e qual. É claro que alguém sempre pode escrever algo em que acredite sinceramente. Felizmente, contudo, os tribunais de avaliação dos trabalhos acadêmicos não avaliam crenças, convicções ou envolvimento com os conteúdos sustentados e apresentados nos textos. Desse modo, posso dizer que não faço a menor ideia se há qualquer coisa como uma narratividade enquanto estrutura da experiência consciente. Pode ser que seja uma coisa histórica, “de época” — mesmo que essa época seja daquelas de imensa duração, que nos liga a Homero — ou ser algo estrutural, inato ou, como se gosta de dizer hoje em dia, natural, algo que pode ser associado com algum tipo de neurônio ou gene. Sei lá. Só sei que às vezes me parece haver algo como uma narratividade estrutural da experiência e às vezes me parece que não. E acho que não só está tudo bem que assim seja como tenho até achado que é melhor que seja assim. Não é uma delícia ficar prostrado diante de uma antinomia indecidível? Aliás, existe em filosofia algo mais excelso e exuberante do que essas antinomias? Em nível mais pedestre, não parece, às vezes, que gente crente demais, convicta demais, com muitas certezas é sobretudo indelicada? No meu caso, o que parece disgusting quase nunca é um conteúdo qualquer das teses, mas uma certa forma de pensar, uma certa forma cheia de convicções e certezas, inseparável de uma certa atitude diante do mundo e da vida.
Como já sabe quem vem dar com os costados aqui, eu ando lendo (sobre) Heidegger. (Sobre o) Heidegger tardio, mais especialmente. E, conforme comentei com um amigo heideggeriano — que, como quase todos os meus amigos heideggerianos, tem um pouco de vergonha das extravagâncias dos textos desse período da obra do filósofo —, quanto mais eu acho os textos do Heidegger tardio meio ridículos, mais fico fascinado, encantado, deslumbrado com eles. Todavia, não é só o período tardio da obra de Heidegger que é meio risível. Ser e tempo também me parece suficientemente digno de riso, às vezes. Mais ou menos como também ocorre com O ser e o nada. Esses textos encantadores me parecem risíveis pelas mais diversas razões, mas também — e especialmente — pela convicção de serem qualquer coisa como "a teoria definitiva da existência”. Não é um pouco risível, em uma página qualquer de Sartre, ler algo como essa passagem?
“Só existe conhecimento intuitivo. A dedução e o pensamento discursivo, chamados impropriamente de conhecimentos, não passam de instrumentos que conduzem à intuição.”
Quanta convicção! Quanta seriedade em sustentar, de modo, tão assertivo, uma convicção! Todavia, quem passou por uma faculdade de filosofia sabe o quanto os textos de filosofia parecem possuir certa “aura” por meio da qual exalam uma espécie de sacralidade secular. Acho que praticamente todo clássico da filosofia tem esse tom quase mediúnico. Essa aura — talvez inseparável do convicto tom profético que um Jaspers e, antes dele, um Weber bem identificaram — é capaz de dobrar as mais argutas e perspicazes inteligências, por meio do fascínio, à atitude de adesão convicta aos conteúdos do que é apresentado. Um texto (um texto qualquer, às vezes até um texto ruim) coloniza uma inteligência, uma sensibilidade, uma personalidade inteira. Somos, para aludir à outra postagem anteriormente partilhada por aqui, sobreadaptados por ideias que nos desconectam do ordinário presente presentista e faz com que tenhamos a impressão de ver a vida de longe. Quem se apaixona pelo risível amor por Sofia — reconhecendo ou não tudo o que ele tem de risível — tende a passar anos em um envolvimento que, tarde demais, perceberá que — e o quanto — esse amor não era lá garantia ou expediente de um futuro profissional muito promissor (mesmo que a história da filosofia, de Diógenes até Walter Benjamin passando por Spinoza, seja uma longa rapsódia de vidas malogradas, os estudantes demoram a perceber onde estão se metendo). Mas a filosofia que nos extravia é a mesma que nos consola, e não é difícil imaginar Carlos Eduardo e João da Ega como se fossem velhos amigos que, uns 10 ou 15 anos depois de defender seus doutorados em filosofia, encontrassem consolo no fato de que, apesar de terem falhado à vida, ao menos possuem a teoria definitiva da existência…
Ano passado esbarrei em uma palestra de Juliano Garcia Pessanha sobre Ser e tempo enquanto livro gnóstico. Em um primeiro momento e em um primeiro nível, me interessou o conteúdo e o tema. Hoje, tem uma outra coisa que tem me chamado muito a atenção, a saber, a possibilidade de certo caráter meramente regional da validade das teses de Ser e tempo. Enquanto Heidegger — assim como Sartre e quem quer que tenha se compromissado com ontologias — pretendia que sua teoria da existência fosse definitiva (eu sei, eu sei, Heidegger não pretendia que seu livro inacabado fosse uma teoria definitiva, mas sejam legais comigo e digamos que de certo modo, toda ontologia radica, formalmente, em uma certa atitude, em um certo desejo por teorias definitivas…), Pessanha, armado com o pensamento de Peter Sloterdijk, sugere que a gnose heideggeriana é de interesse de quem e apenas de quem foi meio jogado no mundo. Para essas pessoas, o rompimento com a errância dispersa junto ao ente é tão interessante quanto é interessante o rompimento com a familiaridade do mundo ordinário e impessoal. Porém — e isso é um elefante filosófico na sala —, nem todo mundo é jogado no mundo. Teve gente que foi muito bem instalada, obrigada, e que não tem nenhuma razão, motivo ou interesse em abandonar cenários familiares ordinários. Para essas pessoas, a gnose heideggeriana seria até mesmo perniciosa. Uma sobreadaptação heideggeriana, nesse caso, seria pura e simplesmente perda de uma instalação bem-sucedida no mundo. Todavia, a filosofia de Heidegger parece apontar, mesmo que de modo indireto, meio metafórico, para uma certa qualidade superior da existência própria, autêntica, gnosticamente vitoriosa de certa queda no fuxico e na fofoca. E essa qualidade superior, conquistada por uma espécie de recuperação de si próprio, da graça de um resgate quase munchaunseniano de si do meio da multidão impessoal e do seu burburinho hipnótico, se depreenderia da reconquista de uma compreensão das próprias estruturas existenciais que seriam as mesmas para todos nós. É claro que posso prever, do ponto de vista estritamente argumentativo, as objeções e observações que me seriam feitas sobre esse estranho caso em que seria tão desinteressante recuperar a compreensão da estrutura da projeção jogada que até pareceria que ela não é uma estrutura tão universal assim. Seria algo como “o conforto da familiaridade ôntica não arranha as estruturas do estranhamento enquanto habitat ontológico do ser-aí”, alguma coisa assim. De certo modo, são análogas àquelas que eu poderia fazer aos episódicos convictos, que não se experimentam enredados em histórias. É o mesmo tipo de objeção e observação que eu sinto vontade de fazer, de modo espontâneo, quase como um reflexo, quando vejo gente dizendo que não ouve vozes nem vê imagens em suas próprias cabeças. Meu impulso é o de dizer — de modo mais elegante, claro — que a estrutura (“o aplicativo”) está aí, trata-se de aprender a usá-lo. Mais ou menos como um músculo que se exercita, como um hábito ou habilidade que se adquire. Mas esse tipo de resposta e aposta séria exige muito compromisso, bem mais do que eu considero elegante ou saudável em termos de exercício do pensamento filosófico. Por mais encantadora e elegante que eu ache a posição filosófica mais transcendentalista, sou “hermeneuta” demais para conseguir apostar all in desse modo. Depois de tantos anos nessa indústria vital, acho que aprendi a realizar a performance de “procurador” dos profetas, de zelar por suas convictas profecias. Mas se hoje alguém, diante de temas como “estruturas” — sejam elas do “projetar-lançado”, do “narrar” ou do “ouvir vozes e vez imagens dentro das próprias cabeças” —, me dissesse a sério que, diante da pluralidade das constituições singulares, acredita que existem dois (ou mais!) tipos de pessoas, acho que eu não faria qualquer objeção. Se a pessoa insistisse — e se estivéssemos em um contexto informal —, imagino que eu tentaria evitar a diatribe, talvez com uma piadinha, dizendo “preferia que não existisse nenhum”. Acho que minha única preocupação genuína — genuinamente filosófica? —, hoje, seria com o formalíssimo grau de envolvimento dessa pessoa com suas convicções. Desconfio que quanto mais alto for esse grau, mais frágil tende a ser a posição justamente porque nascida de uma necessidade de verdades e certezas.
Fora, claro, o fato de que gente muito convicta é deselegantíssima, cafonérrima.
(É engraçado que conheço tanto os bois que eu crio que também sou capaz de antecipar observações de muita perspicácia lógica, do tipo “mas tu estás radicalmente comprometido com o não-comprometimento”, etc. Observações que, hoje, eu não ousaria nem sequer começar a tentar enfrentar nessa pouco divertida — e talvez excessivamente masculina? — brincadeira de guris no recreio, a saber, a de “argumentar e objetar”.)