Fiz uma contagem e constatei que mais da metade dos meus papers e capítulos de livros, publicados ou já aceitos e agendados para a publicação, não leva o nome daquilo que o professor
chama de “falante relevante” que funda um “idioleto” que frequentemente produz “um vocabulário especializado e excludente”. Fiz essa contagem porque essa semana ouvi um comentário sobre o tom mais ou menos generalista que se depreende de algo que elaborei e apresentei. Diante da apreciação dos meus pares filosóficos, portanto, parece que eu deixo — ou faço —faltar os nomes próprios dos filósofos. A coisa se amplifica se e quando essa apreciação é feita por meus pares mais próximos, a saber, aqueles leitores e escrevedores da filosofia assim chamada continental. Por mais que eu já tenha ouvido boas (e ruins) alegações sobre a perda da relevância da distinção “analíticos x continentais” — e que, em geral, eu concorde que em certo nível do fazer filosófico essa distinção realmente já virou história —, acho que há um nível em que essa distinção permanece bastante saliente. Vou chamar esse nível de nível das práticas, dos hábitos, das maneiras de fazer ou deixar de fazer as coisas. Tem todo um nível do que poderíamos chamar de, digamos, um jeitão, uma pegada, um estilo, etc, que permanece perfeitamente classificável nos termos desse binômio. Talvez tenha sido a própria perda da relevância filosófica do binômio que tenha deixado aparecer essas diferenças mais passíveis de approaches estéticos e sociológicos. Digo tudo isso porque acho que é necessário ter um estilo continental pra perceber a ausência dos nomes dos falantes relevantes (nos títulos) das coisas que eu escrevo.
De um tempo pra cá, eu passei a sentir uma pontinha de inveja dos analíticos — termo aqui entendido enquanto, insisto, designador de um estilo. Analíticos tendem — às vezes fazem, mas tendem — a não fazer filosofia fulanizada, para tomar de empréstimo, uma vez mais, uma expressão do professor Ronai. De fato, às vezes a gente escuta expressões que literalmente fulanizam a filosofia, como quando alguém diz “eu faço Heidegger”, por exemplo. Eu, que por muito tempo só fiz Sartre, levei muito tempo pra me dar conta que o mundo da glosa filosófica tem algo de esquisitíssimo. Tudo se passa como se estivéssemos (tomara que não estejamos mesmo) em Fahrenheit 451, memorizando livros, nos tornando sustentáculos vivos de textos — de trechos de textos —, hospedeiros de ideias alheias que, sem nossas comunidades, desapareceriam. Tem qualquer coisa de místico no estilo continental: morro para que em mim O ser e o nada viva. Se há uns 50 anos a historiografia se viu incomodada por um Hayden White, dizendo que historiografia era um gênero literário, acho que faltou à filosofia alguém que dissesse, com o mesmo impacto de White, que a gente trata as obras de filosofia em um viés quase literário. A obra romanesca de Milan Kundera, por exemplo, parece mais porosa ao approach de seu corpus enquanto opus. Há três anos e meio, quando defendi meu doutorado, aleguei, na tese, que o conjunto de textos de um filósofo (até pode mas) não precisa ser vista como corpus de uma opus. Para tentar provar meu ponto, optei por jogar no easy e me servi do caso Sartre. Este, nos seus diários, confessa “ter sempre pensado em fazer uma ‘obra’, isto é, uma série de obras ligadas umas às outras por temas comuns e todas refletindo minha personalidade”. Sartre doa o cartão e dá a senha: uma obra de filosofia pode refletir uma personalidade. Aos 34 anos, quando escrevia esse diário, Sartre declarou que teve “tudo o que quis, mas nunca do modo que queria”. Quatro anos depois, em O ser e o nada, vai oferecer um conceito filosófico de possibilidade existencial que, no limite, pode ser considerada sinônimo de irrealizável. Mas quem é que compreende — ou deveria compreender, caso não queira estar de má-fé — possível como sinônimo de irrealizável? O próprio Sartre? O ser Para-si, em geral, deve aceder à essa compreensão? Ou Sartre escreve livros que, como quaisquer livros — e, portanto, também as grandes narrativas de ficção — clamam pela recepção de um público específico? Enfim, o caso Sartre é easy porque O ser e o nada é um filho temporão de uma tradição das doutrinas, dos tempos em que um filósofo, sentado solitariamente — às vezes muito solitariamente, como por exemplo Schopenhauer — intui o universo inteiro e depreende uma cascata de consequências dessa intuição genial. Parece-me que essa tradição sobrevive, insisto, nessa espécie de Fahrenheit 451 em que se transforma(ra)m grupos de trabalho e de pesquisa fulanizados. Quero deixar claro, porém, que não tenho nada contra GTs fulanizados e tenho até amigos que são meus colegas em um ou dois grupos de pesquisa de falantes relevantes do campo filosófico. Todavia, como já falei semanas atrás, tudo por aqui é suave. Não tenho (mais, mas admito que já tive) esse tipo de amor por autores, amor que fundamenta compromissos — ontológicos e institucionais — pesados. Se tanto o peso quanto a leveza podem ser insustentáveis, me apetece mais o caráter insustentável da leveza.
Uma outra lembrança me vem a mente, do ano de 2015: em uma disciplina para a pós-graduação, o professor
observou que esse mundo filosófico da glosa e da interpretação demandaria um treinamento no primeiro andar do CCSH, no qual fica o curso de história. Fazer Heidegger ou fazer Wittgenstein seria, bem compreendido, fazer não filosofia contemporânea, mas história da filosofia. Essa alegação (o professor nunca soube disso, está sabendo agora) me desesperou um pouco: nas disciplinas de HdF, muito frequentemente, não tem história de nada. Em HdF Moderna I a gente lê as Meditações de Descartes analiticamente, argumentativamente para, em HdF Moderna II, ler um pedacinho (importantíssimo) da Crítica da razão pura de Kant. A história da filosofia, nessas disciplinas, é salpicada com comentários que, como pimenta-do-reino, temperam as aulas e soam como meras curiosidades. É perfeitamente possível que alguém — como eu, egresso de um ensino médio meio mais ou menos — saia da HdF Medieval sem saber que por ali tudo se passou antes da formação da galáxia Gutemberg. Argumento-centradas, as HdF podem produzir um estudante — e, doravante, um pesquisador — que imagina que as ideias flutuam no kósmos noêtós, se derramam sobre médiuns privilegiados e que se tornam conhecidas porque, vitoriosas em uma competição, seriam mesmo as melhores — mais corretas, mais consistentes, etc. De vez em quando, no corredor, no café, no barzinho, a gente lembra que Descartes teve medo do Papa depois do enquadro que este deu em Galilei. A alegação do professor César, com o tempo, me pareceu duplamente inquietante. Primeiro, porque ela parecia, com o tempo, cada vez mais nítida: talvez professores de HdF precisassem mesmo de mais treinamento em H. Depois, segundamente, porque eu me dei conta de que eu queria fazer HdF em um estilo que salientasse a H da F, para que a expressão “história da filosofia” pudesse designar algo mais rico — mais histórico — do que um paper que fosse um comentário sobre alguma alegação de Wittgenstein na (minha querida) § 115 das Investigações filosóficas. Em suma, eu passei a querer trabalhar em um sentido de história da filosofia que não fosse sinônimo de filosofia fulanizada, isto é, comentário de textos antigos.Eu confirmei mês passado, em Ouro Preto, algo que o convívio com a Alexandra já tinha me inspirado, a saber, que tem um jeitão histórico de se aproximar dos textos. Penso naquela declaração de Foucault, de que Heidegger era sua maior influência filosófica. Imaginemos, por um instante, se Foucault, leitor de Heidegger, tivesse optado por comentar a obra de Heidegger em vez de encontrar nela a inspiração para suas próprias reflexões. Acho que seria bem ruim. A Alexandra poderia muito bem ter escrito um capítulo de Os historiadores: clássicos da história sobre Bourdieu (já que até Ricoeur foi parar lá). Mas não é isso que a intencionalidade historiadora faz. É o tema, e não o fulano, que ganha saliência na intencionalidade historiadora que usa o pensamento filosófico e a teoria em geral. Sem descuidar da leitura imanente ou internalista dos textos, dá pra fazer uma leitura interpretativa historicamente orientada dos temas, dos motivos que animam as obras, dos pretextos e contextos que as tornaram possíveis. E isso, claro, é muito maior e mais complicado do que enfileirar cronologicamente os fatos ou adicionar sessões “vida e obra” — como fazem Sofia Rovighi e Reale & Antiseri, só para ficar em manuais de história da filosofia dos quais eu gosto mesmo que às vezes sejam muita F e pouca H. É claro, também, que se eu quiser puxar a brasa para o meu assado, posso identificar Arendt ali, Gadamer aqui e, mais próximo de nós, Sloterdijk, enquanto figuras de proa de um modo mais historicamente orientado de fazer filosofia. Fazer história — da filosofia — assim demanda toda uma familiaridade com os horizontes de expectativa, com os espaços de experiência, com as situações hermenêuticas nas quais os temas emergem e se oferecem para o tratamento filosófico historicamente orientado. Nesse enquadramento, me parece, desaparece a diferença entre uma filosofia que seja pensada de historicamente ou a partir de seus problemas, porque, em suma, os problemas têm história que clamam por uma aproximação específica e adequada. Eu já sentia isso quando escrevia a tese e, por isso, optei por ler Sartre com Ricoeur, e não Ricoeur com Sartre: ler a filosofia de Ricoeur com as lentes da doutrina de O ser e o nada teria me levado (ainda mais) para o interior do idioleto sartreano no qual tudo é má-fé, inclusive toda a riqueza proporcionada pela hermenêutica ricoeuriana da narração. Ricoeur, é verdade, mesmo sendo amigo dos historiadores (um de seus livros pretende ser, segundo ele, parte de “um colóquio ininterrupto” com seus amigos historiadores), nem está tão preocupado em fazer filosofia historicamente orientada quanto com questões epistemológicas da historiografia e, nesse sentido, me parece um pouquinho menos historicamente orientado que Arendt, Gadamer e Sloterdijk. Mesmo assim, as montagens históricas das questões que ele explora — a questão da ipseidade, por exemplo — me permitiram fazer um zoom out sobre O ser e o nada e tomar sua doutrina como um case de “humilhação do si”, mais ou menos como as filosofias de Hume e Nietzsche foram cases. Mesmo que a densidade da orientação histórica de Ricoeur seja mais baixa do que a de Gadamer — seja em Verdade e método, seja nas “crônicas” que compõem o Hermenêutica em retrospectiva —, sua filosofia é muito menos doutrina do que kit de ferramentas ou, quem sabe, como certa feita sugeriu o professor Vanderlei Carneiro, caixa de brinquedos, em uma expressão da qual gosto muito mais, na verdade.
Eu ainda estou bem longe do que estou procurando, eu sei. Omitir nomes próprios de fulanos dos títulos do trabalho não me torna um hermeneuta nem assegura que o texto foi produzido com uma intencionalidade historiadora — até porque, me parece, quem decide isso não sou eu, mas quem lê, a despeito do quanto eu possa querer e tentar controlar a interpretação do que eu digo. Também acho que embora pareça haver uma relação profunda entre filosofia historicamente orientada e história propriamente histórica da filosofia, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Enfim, tudo isso é só o desconforto de um generalista que já não quer, não gostaria e provavelmente não saberia fazer, de novo, comentários respeitosos e reverentes aos clássicos que provavelmente nunca vai deixar de gostar de ler.
A historiografia é dura arte. Felizmente, flanar leve mas atentamente por obras que nos chegam como filosóficas é uma atividade intrinsecamente prazerosa e gratificante. Cabe aos mais velhos ensinar este jogo aos mais novos - ou, ao menos, dar-lhes a chance de descobrir por si mesmos.