Não estava nos meus planos, mas hoje me ocorreu que uma das coisas sobre as quais quero poder falar um pouquinho nesse semestre é sobre o impacto das palavras dos outros sobre as pessoas. Para falar desse tipo de assunto, tenho que falar bem pouquinho, porque minha bibliografia é composta de nomes que, nesse assunto, só parecem poder cumprir a função de vilões ou, no máximo, de sparrings argumentativos. Sartre, por exemplo, vai falar de certa resignação de fundo em sentimentos como orgulho, vergonha ou inferioridade (ele gosta muito de argumentar contra o “complexo de inferioridade” de Adler). Para que esses sentimentos possam se estabilizar enquanto atmosferas que colorem minha vida, “é necessário primeiramente que tenha-me resignado a não ser mais que isto”. Uma designação conferida por outra pessoa pode, pois, oportunizar uma resignação. Uma solução de compromisso, diz a psicanálise. Contudo, uma identidade baseada na vergonha, na culpa, na inferioridade, enfim, em qualquer tipo de mal-estar duradouro… Resolve o que, afinal? Acho que uma boa pista para isso está naquela pergunta de Drummond:
“Entre a dor e o nada, o que você escolhe?”
William Faulkner, por sua vez, tem uma frase que parece uma resposta direta à questão de Drummond:
“Se eu tivesse de escolher entre a dor e o nada, escolheria a dor.”
O consórcio Sartre-Drummond-Faulkner, portanto, nos dá uma pista: é o horror vacui, o vazio aterrorizante, o nada de ser que, às vezes, nos joga em posições em que parece melhor sofrer do que ficar à deriva, na insustentável leveza de não saber quem se é. Isso aparece em ao menos duas obras de Sartre por meio das quais é possível primeiro molhar o pezinho na água gelada do nada para, depois, afundar nela até o pescoço. A primeira é o conto A infância de um chefe. Escrito pelo “jovem Sartre” (isto é, por alguém que ainda não era o monstro que vendeu as próprias intimidades e as de seus próximos na forma de narração romanceada da própria vida), ele pode ser encontrado na coletânea O muro (e, dizem, é bem facinho de achar em PDF, na internet). Para dar um spoiler muito sintético, Lucien Fleurier, o protagonista, é um menininho muito do cabotino, que adora agradar todo mundo e que, quando cresce, naquela fase de tentar se encontrar, tenta de tudo um pouco. Tem, por exemplo, uma relação homossexual mas, herdeiro, conclui que os funcionários do papai não vão respeitar um chefe homossexual. Um dia, de brincadeira, faz um comentário antissemita que faz com que seus amigos rachem o bico e passem a lembrar dele sempre que o assunto é antissemitismo. Diferentemente da homossexualidade, porém, o antissemitismo veste melhor um futuro chefe e é desse jeito que ele encontra uma solução por meio de uma designação. Uma intuição genial do jovem Sartre que, vale dizer, havia sido ele próprio uma criança carente de atenção e cheia de vontade de agradar os adultos.
O outro caso é bem mais complexo. É a imensa análise narrativa da vida de Jean Genet, o poeta maldito que, no título do livro, vira santo, Saint Genet. Órfão, Genet não sabia quem era. Um dia, ainda na infância, quando é pego roubando por brincadeira, é chamado de ladrão. Embora o ladrão seja um arauto do Mal, o Mal, como a dor, é melhor que o nada. Sendo encarnação do Mal, portanto, Genet teria ao menos um lugar no sistema das coisas, das gentes. Estava solucionado o problema que levava um menino a errar de modo disperso. Sendo ladrão, dado que ladrões possuem uma posição bastante rígida e definida no sistema social, Genet estava, enfim, em casa no sistema do mundo. Depois, naturalmente, acontecem outras coisas, mas paro por aqui, já que deve ter ficado claro onde quero chegar. Aliás, só quero chegar mesmo, sem entrar, nas portas desse tema. Se eu tivesse recursos, poderia seguir por esse caminho na direção das palavras tortas proporcionadas pela medicalização da vida psíquica e falar d’A redoma de vidro, de Sylvia Plath, que ouvi li uns meses atrás. Se eu tivesse uma paciência que não tenho, iria pela via de diálogo com autores como Axel Honneth aberta por Paul Ricoeur em Percurso do reconhecimento, mas tenho muito ceticismo com relação ao clima esperançoso e perseverante dessa conversa. Acho que se eu conseguir encaixar esse assunto em uma sequência de conversas sobre certos textos, vou tomar um desvio para a obra de Peter Sloterdijk e seu pensamento imunológico. Para além das políticas do reconhecimento, tem uma morada íntima da qual a gente talvez precise cuidar como se cuida de uma casa — até porque, em certo sentido, é a única que sempre vamos ter, da qual não poderemos nos mudar. Se no âmbito mais amplo das políticas o existencialismo não pode oferecer mais do que um charme film noir, acho que no âmbito mais íntimo, dos nossos cafofos interiores, Sartre nos ajuda a ter uma compreensão um pouquinho mais lúcida acerca de quem a gente convida para entrar, quem a gente pede para sair, quem a gente deixa se sentir em casa mas não deixa esquecer de que não está. A contingência da derrelição, com todos os seus acasos que nem sempre nos protegem quando estamos distraídos, é um traço muito marcante, vivo e nítido da existência. É preciso estar atento e forte para tudo que era apenas uma brincadeira e, de repente, vai crescendo, crescendo, nos absorvendo.
Como esse semestre eu encerro formalmente meu envolvimento com o assim chamado Heidegger tardio, quero postar uma música da qual me lembrei, talvez, em razão do lugar dos deuses na quadratura. Em outros tempos, a tragédia humana era que os deuses eram caprichosos e passionais. Talvez a nossa tragicomédia seja a de que eles estejam fracos, o que me leva ao título dessa canção que me mostraram em 2004, época em que eu ainda não tinha lá muita imunidade existencial, mas na qual, para minha sorte, o acaso me salvou várias vezes em que andei distraído.
Professor, bem interessante seu texto. Eu escrevi sobre a escrita, minha no caso (acho que semana que vem publique no Substack). Falei um pouco do perigo e como é bom escrever. Um abraço e obrigado pela reflexão.