Um querido amigo chamado Omar, que já não posso reencontrar, me contou um segredo que eu não canso de partilhar: segundo ele, O infamiliar ou O estranho (Das Unheimliche) é a melhor porta para a obra de Freud, pois por meio dele entenderíamos que a atividade psíquica é a nossa permanente tentativa de tornar familiar aquilo que é estranho. Meditando sobre isso, a musa me soprou (essas coisas não são mérito nosso, não são criações nossas, a gente encontra elas) uma frase que nunca mais esqueci: a passagem do estranhamento para a familiaridade é o começo da despedida. Estranha, a coisa pode inspirar fascínio e medo. Familiar, a coisa já se mostra em sua natureza, da qual se depreende que ela vai se repetir, em um número finito de vezes, em suaves variações. Estranha, a coisa seduz por seus mistérios, que queremos desvendar. Familiar, a coisa pode ser admirada por aquilo que é, em seu modo de se dar. Estranha, a coisa ainda parece inesgotável. Familiar, a coisa, que repetidamente se dá, passa a parecer iluminada por uma doce nostalgia antecipada que me parece ter sido capturada por uma bela formulação de Gadamer: todo começo é começo de um fim. Será, contudo, que sempre percebemos esses fins, esses términos, esses desfechos, esses adeuses?
Começo esse texto com essa digressão porque, nos últimos dias, nos despedimos tanto de Sebastião Salgado quanto de Alasdair MacIntyre. Com o primeiro, shame on me, travei um contato apenas incidental e superficial. O segundo, há uns dez anos, está na minha prateleira de favoritos (ela é bem grande). Depois da virtude, originalmente publicado em 1981, é um dos mais belos libelos escritos contra o mundo moderno que já li.
O primeiro contato que tive com a obra foi com seu capítulo 15, um capítulo no qual o autor fala em defesa da narrativa enquanto expediente de unidade da vida. Para MacIntyre, nossas vidas tem que ter a unidade das histórias, das narrativas, dos enredos que, reais ou imaginários, dão unidade e sentido para a rapsódia das ações, das paixões e dos acontecimentos. Para MacIntyre, pensadores como Erving Goffman e Jean-Paul Sartre tem uma visão pervertida do que é a história de uma vida, do que é a vida em sociedade, do que são as condutas e as identidades sociais. Interessado por Sartre, encontrei em MacIntyre alguns elementos para reforçar uma posição que me pareceu e me parece cada vez mais confortável, a saber, a de que Sartre é interessante precisamente por suas perversidades suaves.
Li o capítulo 15 de Depois da virtude por sugestão do meu orientador de doutorado. Ele próprio, ontem, comentou que foi MacIntyre que chamou sua atenção para o tema da narrativa em Sartre. Em algumas páginas de A náusea, Antoine Roquentin, o historiador que protagoniza o romance de Sartre, narra sua perda da crença no poder da narrativa: diferentemente das histórias que narramos com consciência do desfecho delas, a existência se dá sem que conheçamos esse desfecho. Na constelação de referências do meu orientador de doutorado, essa discussão se enreda também com as teses de Paul Ricoeur sobre a narração. Este, por sua vez, despendeu muito mais energia na reflexão sobre narração do que MacIntyre e Sartre juntos: se a tese em defesa da identidade narrativa é o coração de O si-mesmo como um outro, porém, Tempo e narrativa é todo inteiro sobre a narração. Curiosamente, por mais que Ricoeur explique mais e melhor o que é a narração, o que ela faz e como ela opera, ele é menos narrativista que MacIntyre. Este, mais próximo de Wilhelm Schapp ou de David Carr, vê uma continuidade entre a existência e a narração, diferentemente de Ricoeur, que metodologicamente as separa: para este, na existência, as experiências prefiguram o que a composição narrativa configura. Por mais que haja uma espécie de eco kantiano nessa hipótese da narração enquanto síntese do diverso, Ricoeur não chega ao ponto de dizer que a experiência sem enredo é cega, como talvez pudesse ter dito. Para MacIntyre, por sua vez, o ser humano “é, em suas ações e práticas, bem como em suas ficções, essencialmente um animal contador de histórias. Não é, em essência, mas se torna no decorrer de sua história, um contador de histórias que aspiram à verdade”. Segundo MacIntyre, a narratividade é qualquer coisa como condição de inteligibilidade do agir, do sofrer e do acontecer em geral. “A ideia de uma história é tão fundamental quanto a ideia de uma ação”, diz MacIntyre. Em suma, uma ação só é inteligível em um enredo. Conforme MacIntyre…
“… Narrativa não é obra de poetas, dramaturgos ou romancistas que ponderam sobre fatos que não tinham ordem narrativa antes de lhes ser imposta pelo cantor ou pelo escritor; a forma narrativa não é disfarce nem decoração. (…) É porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para se entender os atos de outras pessoas. As histórias são vividas antes de serem contadas.”
Compreendemos narrativas porque a experiência é a priori experiência com enredo, portanto. Nisso, eu tendo — isto é, sem convicção — a acompanhar MacIntyre mais do que acompanho o próprio Ricoeur: se a narrativa é compreensível é porque ela compõe as estruturas da compreensão desde o início. A radicalidade dessa hipótese, claro, exige que façamos algo com pessoas como Galen Strawson, autor de Against narrativity, que não só declara que não tem nenhuma experiência de algo como um enredo pessoal como, indo mais longe, dispara contra todos os narrativistas ao mesmo tempo: MacIntyre e Ricoeur, ao propor esse Homo narrans, não só estariam falando de si mesmos como estariam propondo uma espécie de ideal de humanidade no qual gente como ele próprio, G. S., seria menos humano por não sentir necessidade ou vontade de elaborar em enredo as cinzas de suas horas. Na minha tese de doutorado, achei pertinente explicar esse antinarrativismo convicto com uma ajudinha da teoria da história de François Hartog: o presente presentista que nos foi dado instaura uma atmosfera na qual essa estrutura narrativa da experiência pode ficar adormecida ou atrofiada. Anos depois de defender minha tese, achei que podia também atacar minha tese e admitir que talvez apenas existam dois tipos de pessoas, as narrativas e as episódicas, e pronto. Assim reorganizado, o debate fica mais pobre, mais simplório, quem sabe até um pouco besta, mas talvez fique mais parecido com as coisas como elas são.
Depois da virtude é uma obra aristotélico-tomista. No nosso Brasil varonil, demasiado varonil, essa expressão ganhou certa saliência por meio de um finado bonzo que foi guru de um certo ex-presidente. Minhas primeiras leituras de MacIntyre coincidiram com os primeiros tempos de minha prática docente, tempos nos quais tive a alegria e o prazer de trabalhar em uma faculdade católica. Faz parte das ironias da vida que esses anos tão doces tenham sido também os anos de mudança da situação política no Brasil, de relativa mudança no horizonte de expectativas de toda minha geração. Depois de junho de 2013, parte da gurizada do seminário percebeu que não estava sozinha e que podia, sim, dizer que o finado bonzo tinha razão. Confesso que tentei, sem qualquer sucesso, substituir o bonzo por MacIntyre no escopo dos interesses bibliográficos dos rapazes que se radicalizavam. Tentei sugerir que dava, sim, pra ser conservador com elegância, com rigor, até com charme retórico. Por meio de um gesto quixotesco, tentei apagar um incêndio florestal com uma caneca. Realmente achei que a gurizada poderia se interessar por uma narrativa na qual tudo o que veio depois de São Tomás de Aquino foi só ladeira abaixo, mas acho que essa mensagem só seduzia porque estava diluída em um estilo retórico bem diferente do de MacIntyre. Bem mais… Digamos… Intestinal.
Voltei ao Depois da virtude quando li — e reli, pois foi um livro que comecei a reler imediatamente depois de terminar de ler — Crítica e crise, de Reinhart Koselleck. Este é uma patogênese do mundo moderno, burguês. Conforme observam alguns especialistas, Koselleck parece achar que a História acabou em 1945, conforme parece sugerir sua parte no verbete Geschichte nos Geschichtliche Grundbegriffe. Concluído em 1953 e publicado em 1959, Crítica e crise é um desses livros que poderia ter outro título, um que surgiria da mera adição de um acento no conjuntivo: crítica é crise. De modo bem grosso, Koselleck mostra como os Iluministas, como os filósofos da história, como as sociedades literárias, enfim, como a intelligentsia europeia se transformou em uma espécie de poder paralelo: com suas utopias e fantasias desvairadas, teriam sido capazes de, como se diz em gauchês, inticar a burguesia até virar de ponta cabeça a ordem estabelecida e iniciar um novo paradigma social que só poderia culminar no completo desvario que foi a primeira metade do século XX. Do que temos de Koselleck traduzido para o português, dá pra dizer que Crítica e crise é a narrativa que paira em todos os outros livros, constituídos por ensaios sempre mais teóricos do que propriamente narrativos.
De certo modo, Depois da virtude também é um livro narrativo, uma aposta na ideia de que compreender o pensamento moral exige a compreensão da história deste pensamento. MacIntyre parte de uma hipótese: nosso vocabulário moral é feito de escombros, de palavras vazias, de conceitos que, desprovidos dos contextos em que tinham sentido, já não significam nada. Diferentemente de Ricoeur, que sonha com um zelo coletivo pelas instituições justas, MacIntyre não vê salvação: no Império Romano em decadência no qual estamos, somos condenados aos administradores e aos terapeutas, essas figuras do absurdo burocrático kafkiano em que ele pensa que existimos. MacIntyre narra esse processo de esvaziamento — narra mais que Hermann Broch, romancista, que em Os sonâmbulos oferece digressões reflexivas sobre a decadências dos valores — e mostra como Hume, Kant, Kierkegaard e Nietzsche são capítulos de uma história de enlouquecimento do senso moral na modernidade. Depois, MacIntyre retorna a Aristóteles, vai até Tomás de Aquino e conclui: não, neste mundo globalizado, nesta sociedade, nesta modernidade, não há possibilidade de sentido na existência. Esta é uma época de Sartre, de Goffman, de Weber e de Kafka, uma época de Beckett, época de um mecanismo fora de controle, funcionando sozinho e para além de qualquer controle, na direção de sua própria destruição. Nossa sociedade é um teatro feito de personagens sem atores — “um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem quem as vive”, como diz Robert Musil — e só fora dela, em pequenas comunidades, é possível voltar a existir no domínio do sentido. Se Charles Taylor fala do relativismo brando da “era secular” em que estamos, MacIntyre parece ver um relativismo absoluto, no qual a esquizofrenia moral é a regra e o sentido não pode florescer nem por acidente. Nesse mundo, só podemos esperar Godot. Todavia, só um novo e diferente São Bento poderia nos salvar, reorganizando possibilidades comunitárias distintas e distantes da grande História global que, para ele, ainda não acabou, que só acabará quando acabar consigo mesma. “Histórias no plural”, como gostaria Koselleck, só parecem possíveis, para MacIntyre, em algum contexto meio Amish, talvez meio hippie, provavelmente meio monástico.
Usei MacIntyre em dois momentos na minha tese de doutorado. Primeiro, comentei suas ideias sobre narração. Depois, falei que hoje em dia temos, talvez, três possibilidades básicas de existência:
“Ou 1) se vive a autenticidade do sujeito esvaziado tayloriano no mundo weberiano-kafkiano da administração tal como descrito por MacIntyre, ou 2) se vive um retorno comunitarista ao mundo das virtudes ou, alternativamente, 3) se vive uma existência singular, cindida e desvinculada da valorização do futuro progressista das sociedades caracterizadas pelo planejamento e das comunidades inspiradas pela tradição, uma existência episódica e quase mística.”
Todas as três possibilidades aparecem nos romances de Milan Kundera. Confesso: chamar a possibilidade 1 de mundo weberiano-kafkiano é dar razão para MacIntyre contra Ricoeur, para quem esse mundo não pode prescindir da possibilidade das instituições justas. Contudo, para preparar o terreno para a exploração dos romances de Kundera, foi retoricamente interessante dar razão para MacIntyre, já que também Kundera, diferentemente de Ricoeur, não tem um olhar otimista, piedoso ou apaixonado pelo mundo que nos foi dado. Também Kundera é meio anti-moderno: se a modernidade é o regime de historicidade no qual o romance pôde florescer, o romance é a consciência amarga que acompanha a doce comicidade que constitui as fantasias desvairadas da modernidade. Em 1986 (mais ou menos na mesma época de Depois da virtude, portanto), Kundera também falara do fim: viveríamos no período dos paradoxos terminais dos tempos modernos, isto é, no período em que todas as categorias modernas se mostram com sinal invertido. A aventura da fantasia desvairada, descoberta por Cervantes, está encerrada, conforme o sabemos desde que Kafka narrou essa impossibilidade. "Quando um fenômeno anuncia, de longe, seu próximo desaparecimento, nós somos muitos a sabê-lo e, eventualmente, a lamentá-lo”, diz Kundera, acrescentando que, porém, “quando a agonia chega a seu fim, nós olhamos adiante”, pois “a morte se torna invisível” e “o fim não é uma explosão apocalíptica”, “talvez não exista nada tão pacífico quanto o fim”. Se Kundera está correto, Depois da virtude é precisamente uma exploração desse Apocalipse pacífico, silencioso, invisível, que poucos percebem, perceberam ou perceberão.
“Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando”, diz o início de Fim de partida, de Beckett. Por toda parte, é o fim. Está quase acabando meu período de pós-doutorado, no qual, confesso, não me servi tanto assim de MacIntyre. Nos dois últimos anos, li textos do período tardio de Heidegger e me perguntei se o novo e distinto São Bento pelo qual esperava MacIntyre não era o Heidegger que falava do habitar poético, mas acho que não: aguardar sem expectativa, como sugeriu o mago de Messkirch, não é muito aristotélico-tomista, eu acho. Porém, para Heidegger, muita coisa também já acabou, está acabada, quase acabando, como a própria história da metafísica, isto é, da filosofia, que se consumou no século XIX. Nos últimos anos, em vez de MacIntyre, li Richard Rorty, mui amigo de tudo o que MacIntyre mais odeia. Curiosamente, Rorty diz coisas que, em certo nível, se sobrepõem às coisas que diz MacIntyre: também Rorty parece ser um desses que percebe um fim que ninguém mais percebe nem é educado para perceber. Afinal, toda essa coisa de fim da metafísica só significa, na prosa da existência, uma coisa: já não é na filosofia — mas, talvez, no kitsch jornalístico e publicitário, que é o mesmo do Times ao Spiegel — que a cultura se olha no espelho. É o telejornal que empresta ao filósofo um minutinho de fala — para que este fale do que o telejornal previamente decidiu. A filosofia, hoje, muito mais que um estrato da cultura, é uma profissão. Em uma história de vinte e cinco séculos, me parece, isso é uma transformação muito recente. Na prosa dos dias, aliás, me parece que isso não foi — e talvez não possa ser, dada a aura de sacralidade e solenidade que emana do arco de textos que vai de Platão até Hegel — assimilado pelos ocupantes do campo.
Fim da metafísica, fim do romance, fim do futuro. O que se faz depois do fim? O que se faz depois da virtude, quando tudo o que fazemos parece vazio, meramente performativo? O que fazer quando, para citar Kundera, nada mais é “obra (coisa destinada a durar, a unir o passado ao futuro), mas acontecimento da atualidade como outros acontecimentos; um gesto sem amanhã”? Aliás, sobre o fim, Ricoeur tem um belo binômio que permite que nos mantenhamos na sabedoria da incerteza: será o fim catástrofe ou libertação? Ou ambos? O fim da tirania do futuro não pode ser expediente de tomada de consciência do presente que nos foi dado? O futuro, afinal, não é aquilo que perseguimos em vão para, no fim em que acaba todo começo, terminar encontrando outra coisa?
MacIntyre se foi. Nós que aqui estamos, segundo ele, por Godot esperamos.