Iniciei meu doutorado em filosofia em 2014, dez anos depois de entrar na graduação e dois anos depois de defender o mestrado. Na época, eu lecionava em uma faculdade particular e em três outras empresas. Trabalhava muito, talvez demais, e hoje acho que isso teve tudo a ver com o fato de que fiquei dois anos só trabalhando, sem ter feito o que foi mais típico e natural para as pessoas da minha geração, a saber, saltar direto do mestrado para o doutorado. De todo modo, voltar para a universidade foi ocasião de me sentir novamente imbuído daquele que, penso, é um dos mais belos sentimentos humanos, a saber, o entusiasmo. Todo meu “espaço de experiência” foi coberto pelo nevoeiro perfumado do entusiasmo, nevoeiro que operava como um filtro por meio do qual eu via e vivia tudo com intensidade. No nevoeiro do entusiasmo, que a tudo coloria com sentido — talvez com sentido demais, quem sabe —, tudo parecia “acontecimento”. Em outras palavras, tudo o que acontecia parecia apontar para efeitos e consequências transcendentes, que só se explicitariam plenamente no futuro. Tudo — ou quase tudo — parecia começo de alguma outra coisa, de alguma história maior, clamando por se desenrolar até os limites da plenitude. Tudo parecia pleno de potências e cheio daquela beleza do acaso da qual tanto falou Milan Kundera. Aliás, o próprio Milan Kundera contribuiu para isso, lançando um inesperado — e último, hoje sabemos — romance cuja tradução para o português foi publicada em 2014. É claro que a memória, essa província da imaginação, pode estar me traindo, mas tenho a sensação de que todo mundo — quase todo mundo, melhor dizendo — ao meu redor estava meio que imbuído, em algum sentido e em distintas intensidades, de alguma variação de algum sentimento de entusiasmo. Foi nessa época em que um lançamento de livro era algo cheio de simbolismo que surgiu um intitulado Aspectos da modalidade: a noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica, de autoria de Róbson Ramos dos Reis.
Fui aluno do prof. Róbson na graduação. Ou melhor, não fui seu aluno. Ao menos não oficialmente, já que quando chegou minha vez de fazer história da filosofia contemporânea era outra pessoa que lecionava essa disciplina. Todavia, assisti muitas de suas aulas na condição de ouvinte-intruso, já que suas aulas eram uma ocasião privilegiada de ter aulas de história da filosofia, isto é, aulas que não se constituíam apenas do exame exegético dos clássicos. Nas aulas do prof. Róbson ouvi explicações detalhadas do que foi o processo da rápida ascensão e da rápida queda do chamado idealismo alemão, da filosofia hegeliana, da metafísica enquanto modo, digamos, paradigmático de se fazer filosofia. Na época, próximo da conclusão da graduação, eu já estava enamorado por aquele que, dizem, foi o livro de filosofia mais vendido do século XX, O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre. Nessa mesma época eu me servia de Sartre: metafísica e existencialismo, de Gerd Bornheim, como leitura de apoio ao livro de Sartre, famoso por ser difícil. Nas aulas do prof. Róbson eu compreendia mais e melhor a complexa posição da filosofia de Hegel enquanto culminação da metafísica da qual falava Bornheim e compreendia a filosofia em uma chave de leitura na qual ela aparecia como um longo sonho de estabelecer e assegurar a identidade entre o ser e o pensar. Se me é dado o direito de pensar que algumas situações são privilegiadas porque são começos de coisas que, de certo modo, nunca mais terminam porque nunca cessam de produzir seus efeitos e consequências, penso que essas aulas do prof. Róbson, por volta do ano de 2008, ajudaram a fixar em mim o interesse e a paixão por alguns temas da história da filosofia.
Dois anos depois, em 2010, me tornei aluno stricto sensu do professor. Eu já estava no mestrado e a disciplina era sobre a segunda parte de Os conceitos fundamentais da metafísica, de Martin Heidegger. Nessas aulas, o prof. Róbson falou de algumas coisas que, naturalmente, não esqueci. O texto de Heidegger apresentava as ideias do filósofo sobre o que seria uma abordagem fenomenológica do modo de ser da vida, isto é, de animais e plantas. Enquanto nós, seres humanos, somos no modo de ser da existência, lançados na facticidade e condenados ao sentido, animais e plantas são no modo de ser da vida. Nos termos dos CFM, nós somos formadores de mundo enquanto os meramente vivos são pobres de mundo. Desse modo, quando um estudante de filosofia saía do RU da UFSM no inverno e ficava lagarteando ao sol enquanto descascava uma bergamota, seu lagartear era ontologicamente diferente do lagartear do lagarto propriamente dito. Todavia, é inegável que o lagartear do lagarto é um “comportamento” que possui sua própria “intencionalidade”, e as aspas se impõem porque é muito difícil acompanhar, com categorias apropriadas para designar a existência, aquilo que ocorre na mera vida. Eis a “dificuldade do acompanhamento”, a dificuldade — se não a impossibilidade — de reconstruir, elucidar e entender plenamente aquilo que “fazem” os vivos. No final da disciplina, o prof. Róbson se serviu se sua arte didática de criar expectativas e assombrar os estudantes com as conclusões de suas exposições: não haveria, também, uma dificuldade de acompanhamento na relação entre ser-aí e ser-aí, entre um ser humano e outro ser humano, entre pessoas? Menciono isso porque tenho, há mais de um ano, um ensaio sobre esse tema. Vou relê-lo e jogá-lo aqui um dia desses. Para o momento, registro que o ano de 2010 foi o ano em que estabeleci uma relação mais sólida e substancial com o prof. Róbson. Mesmo que minha pesquisa fosse sobre a filosofia de Sartre, minha compreensão desse filósofo sempre foi matizada pelo fato de que o próprio Sartre, em um sentido muito especial do termo, era um pensador heideggeriano. Heideggeriano como Bornheim, meu comentador preferido da obra de Sartre. Heideggeriano como Joseph Fell, autor de um livro que de certo modo o prof. Róbson me deu de presente em outubro de 2010, livro que inesperadamente se tornou o núcleo das minhas pesquisas mais recentes, já que é um livro que não só é a maior comparação sistemática já feita entre a totalidade das obras de Heidegger e de Sartre como também é um livro que interpreta essas obras sob a chave do sucesso e do insucesso dessas filosofias em assegurar a identidade entre ser e pensar, essa identidade que, conforme aprendi nas aulas do prof. Róbson, era o obscuro objeto do desejo obsessivo da filosofia desde seus primeiros dias. Heideggerianos eram e permanecem sendo também os orientandos do prof. Róbson, especialmente aqueles que se tornaram bons amigos, como o André, o Gabriel e o Pedro, essa trinca de ases que até os dias de hoje, nos quais estou mais heideggeriano-em-um-sentido-muito-especial-do-termo do que jamais estive, eu infernizo por esclarecimentos acerca desse ou daquele tema, aspecto ou detalhe do pensamento heideggeriano. Heideggeriano é o próprio prof. Róbson — mesmo que, segundo algo que ele próprio disse recentemente, seja “um heideggeriano de férias”.
Heidegger é um filósofo controverso e sua filosofia, além de difícil, é controversa o suficiente para inspirar questões acerca de sua eventual contaminação pelas controvérsias biográficas do filósofo. Dado que essas controvérsias — bem como os fatos pouco controversos em torno das quais orbitam as controvérsias — são bem conhecidas, opto por não oferecer aqui nenhum elemento para os eventuais arroubos do figalismo* que frequentemente acomete até mesmo os mais competentes leitores da obra do filósofo. No meu enquadramento pessoal da coisa filosófica, Heidegger é, como dizia meu orientador de mestrado, o prof. Marcelo Fabri, incontornável. Acho que ele é incontornável por ao menos uma razão muito forte e muito profunda: Heidegger desamarrou uma besta.
Há um artigo do prof. Róbson intitulado A besta desamarrada. O texto é sobre a ciência e a técnica tal como compreendida por Heidegger. Todavia, eu gosto dessa expressão, que é do próprio filósofo, para pensar uma outra coisa, a saber, o tempo. Se assumimos uma posição parecida com a de Heidegger e olhamos para a história da filosofia, vemos essa história como a história de uma longa tentativa de asseguramento de razões suficientes para que as coisas sejam como são. O problema é que a filosofia já nasce comprometida, digamos assim, com o propósito de tentar redimir a realidade daquilo que seriam suas imperfeições. Uma das maiores imperfeições da realidade, nesse enquadramento, é o fato de que ela é temporal, de que ela é um lugar no qual tudo passa, tudo muda, tudo se dissolve e se move em uma direção que parece ser a do próprio nada, do esquecimento absoluto, no qual, ao fim de tudo, tudo teria se passado como se nada tivesse se passado jamais. “A tristeza do finito”, nas palavras de outro leitor de Heidegger, a saber, o filósofo Paul Ricoeur. Esse sentimento é tão poderoso que até mesmo hoje, no mundo da mera física que substituiu a metafísica depois do processo que se convencionou chamar de “morte de Deus”, apaixonados por astronomia são capazes de colocar sua imaginação especulativa a serviço da construção de cenários do que nos separa do fim do tempo, momento no qual enfim o tempo, depois de dissolver e dissipar tudo, perderá o próprio sentido. Esse horror vacui seria, de certo modo, o motor da história da metafísica. Durante vinte e cinco séculos, portanto, o pensamento filosófico se incumbiu da tarefa de mostrar que para além do âmbito em que tudo passa, muda, perece e fenece, há um outro no qual tudo permanece eternamente imperecível, perfeito, infinito e pleno. E Heidegger, por meio da fenomenologia, teria mostrado que não, que não há nenhum outro âmbito originário senão este, da finitude, na qual o tempo é o horizonte do ser, que a temporalidade, enquanto nervura estrutural da existência, é o próprio lugar do acontecimento da compreensão do ente que se manifesta. É por isso que eu acho que diante dos vinte e cinco séculos de metafísica que precederam a obra de Heidegger, esta obra é o desamarrar de uma besta, da besta mais temida e mais evitada pelo pensamento do fundamento absoluto e pleno, pela busca do infinito e da perfeição que redimiria o existir temporal e compensaria o castigo de uma existência separada e distante desse infinito e dessa perfeição. Esse é o meu Heidegger: o pensador que, ao desamarrar a besta do tempo, nos reconectou com a possibilidade de uma experiência radical da finitude.
O meu Heidegger certamente não é o Heidegger do prof. Róbson — até porque, além do fato de que eu não conheço o idioma alemão, o meu Heidegger é um Heidegger mais constituído por aquilo que eu li sobre sua obra do que pelos textos do próprio Heidegger. Em uma entrevista recente, o prof. Róbson falou sobre algumas das dificuldades concernentes ao estudo e pesquisa da obra de Heidegger e, entre elas, mencionou uma que parece bastante importante, a saber, o fato de que parte da interpretação especializada da obra do filósofo tende a sustentar que essa não é uma obra que mereça ou deva ser tratada academicamente, por meio da glosa analítica profissionalmente especializada, como se fosse um outro filósofo qualquer. A filosofia de Heidegger demandaria uma leitura meio patética (talvez nos dois sentidos do termo, a saber, o do pathos e o do ridículo) porque seria um percurso de transformação. A adequada compreensão da finitude tal como explicitada pela filosofia heideggeriana levaria ou deveria levar alguém a, quem sabe, mudar. Não é difícil imaginar — para quem, claro, não teve o desprazer de ter de viver em — cenários nos quais um estudante ou professor de filosofia se comporta de modo esquisitíssimo e justifica a esquisitice com base nessa ou naquela obra lida de modo altamente patético. O Heidegger do prof. Róbson é o autor de uma fenomenologia hermenêutica, isto é, de um modo muito especial de fazer filosofia, de pensar filosoficamente. Foi isso que apareceu de modo nítido — como já aparecia e permanece aparecendo nos papers do professor — em Aspectos da modalidade, lançado em 2014.
Eu queria ter escrito, em 2014, uma resenha de Aspectos…. Contudo, o impacto do livro em mim foi tal que eu, com humildade, constatei que não poderia nem conseguiria escrever uma resenha digna do livro. Como (ainda) digo para meus amigos heideggerianos, às vezes tenho que ler Heidegger para entender Róbson. Não faço essa jocosa alegação no intento de desmerecer o texto do professor. Pelo contrário: o texto é claríssimo, dotado de uma organização argumentativa que, me parece, não se encontra em nenhum texto do próprio Heidegger. Todavia, a clareza é permeada por uma densidade conceitual que, acompanhada do famoso rigor do professor em seus textos e falas, faz do texto uma iguaria a ser saboreada de modo demorado — tão demorado que, de certo modo, Aspectos… é um livro cuja leitura eu não considero ter concluído. Hoje, nove anos depois de seu lançamento e envolvido com um projeto de pesquisa que, enfim, inclui um envolvimento direto com o pensamento de Heidegger, Aspectos… está na minha mesa de trabalho.
O subtítulo do livro, como já mencionei, é A noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica. A noção de “possibilidade”, portanto, em Ser e tempo — obra magna de Heidegger — e nos textos que, como satélites, estão na órbita cronológica desse livro. É difícil falar da importância da noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica porque isso envolve falar da muito especial, especialíssima, especial e esquisita, especialíssima e esquisitíssima noção de temporalidade na fenomenologia em geral e na fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Minhas estratégias, um pouco diferentes das do prof. Róbson, passam sempre por um certo comparatismo, isto é, por uma posição na qual uma coisa fica mais bem elucidada quando comparada com outra coisa. E a mais célebre concepção filosófica de temporalidade é talvez aquela de Santo Agostinho, que de certo modo nos diz que o futuro e o passado não existem, senão enquanto virtualidades produzidas por nossas expectativas e memórias, por nossas esperanças e lembranças. O futuro é presente futuro, o passado é presente passado. Só existiria, portanto, o presente, aquilo que se apresenta, que se dá ao nosso perceber e constatar. O resto é fantasmagoria, ilusão e fantasia (exceto, claro, a eternidade, mas não vou falar disso aqui). De certo modo, todo mundo menos Heidegger faz parte desse pacto da metafísica da presença, metafísica que considera de modo privilegiado aquilo que se dá, relegando à inexistência aquilo que se esconde, que em geral se ausenta, que não pode ser visto aqui e agora. Em um sentido muito especial, é contra isso que se mobiliza o pensamento de Heidegger.
A noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica é uma noção de possibilidade, insisto, muito especial porque muito esquisita, muito contraintuitiva. Não é como se Agostinho, afinal, não tivesse certa razão: em um certo nível da nossa experiência, o presente de fato prevalece e parece drenar para si todos os privilégios concernentes ao modo como encontramos, em geral, as coisas. No cotidiano, parece mesmo que o presente é tudo o que existe. Todavia, Heidegger revela aquilo que o historiador Reinhart Koselleck chamou de estratos do tempo, a saber, o fato de que a temporalidade é constituída por mais níveis do que nossa experiência cotidiana e ordinária é capaz de captar. Há, por exemplo, o discretíssimo nível da historicidade, da história da conformação dos ambientes e cenários nos quais estamos instalados e que normalmente habitamos, uma historicidade que coordena as normas por meio das quais as circunstâncias já sempre estão organizadas e instituídas — o que faz da nossa facticidade, isto é, do caráter contingente de nossa inscrição em mundos históricos que não escolhemos habitar mas que inevitavelmente habitamos, um aspecto não só significativamente histórico como também significativamente esquecido ou até mesmo recalcado por uma metafísica que sempre propôs que nosso verdadeiro lar é em outro lugar. Há, ainda mais discreto, quase invisível, o nível da temporalidade originária, isto é, da própria temporalização enquanto estrutura íntima da compreensão, da existência. Nesse nível, diferentemente do cotidiano, em que o presente impera, e da historicidade, em que o passado vige, é o futuro que coordena e comanda nossa projeção lançada, jogada, direcionada para possibilidades. No fundo, é “a força silenciosa do possível” que nutre toda conduta, todo comportamento, todo gesto e toda palavra, por mais imersos que eles estejam no cotidiano, por mais imbuídos dos traços de costumes e tradições históricas nos quais estamos inscritos, que eles sejam. A noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica, portanto, designa uma instância absolutamente central da constituição da existência, esse nosso modo de ser. Existir, nesse sentido, é ser e já sempre estar direcionado para possibilidades, em cenários historicamente conformados e que, desse modo conformados, constituem os horizontes que limitam e definem os ambientes cotidianos.
Três anos antes do Aspectos… (quando eu concluía o meu mestrado e, portanto, já o havia convidado para minha banca de defesa da dissertação), o prof. Róbson, em um paper, fez três afirmações que, muito tempo depois, anotei na primeira página do meu exemplar de Ser e tempo, a saber, que:
– “as possibilidades existenciais não se realizam nem como papéis sociais nem como propriedades de estado”;
– “a negatividade do possível sugere que é precisamente por não se atualizar que as possibilidades têm força normativa”;
– “há um excesso jamais atualizado de possibilidades, até mesmo naquelas nas quais se dá a projeção”.
O tema reaparece em algumas das minhas páginas preferidas de Aspectos…. Neste se lê sobre a “inadequação de toda projeção efetiva em relação ao poder-ser que determina ontologicamente a existência” e que, portanto “há genuínas possibilidades existenciais que não se efetivam projetivamente” porque “o poder-ser é excessivo”. Lidas por jovens estudantes que se moviam em um nevoeiro de sonhos, essas frases eram discutidas nos corredores da universidade e nas mesas dos bares como se fossem cláusulas pétreas sobre uma — para usar uma expressão de um personagem de Os Maias, de Eça de Queiroz — teoria definitiva da existência. O caráter excessivo, negativo e irrealizável das possibilidades era trazido ao centro da conversa sempre que, por exemplo, alguém estivesse manifestando demasiada empolgação com isso ou aquilo. A possibilidade era excessiva e, portanto, lembrávamos uns aos outros que aquilo que aconteceria jamais coincidiria com aquilo que se desejava. A possibilidade não se realizava como propriedade de estado e, portanto, valia aquilo que Antônio Abujamra respondia quando alguém lhe dizia que estava bem: “aproveite, porque passa”. Por alguns meses em que o acaso se derramou como graça sobre muitos estudantes, fomos quase existencialistas, em um sentido bem pouco adequado ao Heidegger do prof. Róbson — que, todavia, parecia achar alguma discreta graça naquela estranha consequência que os seus textos e outros textos produziam em estudantes que, em um sentido muito especial do termo, ao menos por algum tempo, pareceram capazes de romantizar quase tudo aquilo que liam e que ouviam nas salas de aula.
Todavia, se o quase-existencialismo da Saint-Germain-des-Prés da Boca do Monte foi um momento que durou apenas algumas estações, me sinto impelido a reiterar que Aspectos…, insisto, reitero, não cessou de produzir suas consequências. No meu caso, foram precisamente essas páginas que falavam do estranho caráter excessivo, negativo e meio irrealizável do possível que, anos depois, já recentemente, cintilaram para mim em nova luz. Nessas mesmas páginas o prof. Róbson acena para o tema do “antinomismo gnóstico” que se depreende da “falta de qualquer vinculação estável e fundada a alguma normatividade existencial” que “aparentemente está presente no nível mais profundo da analítica existencial”. Segundo o professor, “essa inadequação entre ser um poder-ser e as projeções e individuações concretizadas caracteriza o profundo estranhamento e a falta de domicílio, por assim dizer, do modo de ser do ser-aí”, estranhamento e falta de domicílio no qual se vê “o acosmismo da tradição gnóstica, tão bem estudado por Hans Jonas”. Esse ser humano concebido como “criatura da distância” e que existe em “uma travessia que é história” está, hoje, na base dos meus projetos de pesquisa — atestando, de certo modo, que o possível é mesmo excessivo e que não cessa de exercer sua força normativa precisamente em razão do fato de que não se atualiza. Embora Aspectos… não seja um livro sobre os aspectos gnósticos identificáveis no pensamento de Heidegger, foram as páginas deste livro que dispararam em mim a ideia de investigar esse assunto um pouco mais e melhor, como estou tentando fazer agora, em um pós-doutorado. E é claro que esse inesgotável excesso de possibilidades tende a aparecer mais — embora não necessariamente melhor — para quem, como eu, tem hábitos, manias e gostos como o de ler e reler os livros que ama. Todavia, tenho a forte impressão de que Aspectos…, a despeito da densidade conceitual e do fato de que fala sobre bem mais assuntos do que sobre esses poucos aspectos da noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica que mencionei, foi recebido e comentado — ainda que não tenha sido tão bem lido por nós quanto poderia, em algum outro cenário possível — por algumas pessoas que, na época, estavam imbuídas de algo parecido com aquilo que Robert Musil chamou de senso de possibilidade, isto é, da impressão de que o possível excede o atual e jamais se esgota nele.
Já se vão nove anos desde o lançamento de Aspectos…. Esse texto que escrevo agora, por supuesto, não substitui a resenha que nunca fiz para o livro. Todavia, se é possível acolher com caridade interpretativa o que aleguei aqui, caso ainda não tenha ficado claro, tenho a impressão de que essa resenha foi oferecida, há nove anos, por alguns jovens estudantes que atestaram, na prática, uma compreensão (pré-ontológica, digamos assim) da primazia do possível sobre o atual. Nove anos se passaram e hoje acho que todos nós já sabemos mais ou menos que nossos sentimentos de enredo e de aventura, por meio dos quais experimentamos tantos novos começos, não são senão a própria experiência desse caráter excedente, negativo e irrealizável do possível tal como concebido na fenomenologia hermenêutica. Em outras palavras, se já há nove anos a noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica era divertidamente acionada como freio de mão contra as euforias desmedidas, acho que nove anos depois todos já compreendemos um pouco melhor essa força silenciosa de um possível excedente, negativo e irrealizável. Do fato de que não descansaremos em identidades estáveis ou em estados de permanente plenitude não se segue que a existência não possa ser existida em atmosferas afetivas muito especiais. Aliás, anos atrás eu procurava por uma palavra que designasse algo que seria o contrário do sentimento gnóstico de estranhamento e falta de domicílio. Procurava uma palavra que designasse precisamente um sentimento de domicílio, sentimento experimentado nas privilegiadas situações em que alguém sente que é quem é (mesmo que a existência não descanse em identidades estáveis) porque está em casa (a despeito da incontornável inadequação entre o projetar e o concretizar). Foi no Aspectos…, novamente, que encontrei essa palavra. Curiosamente, ela não estava no conteúdo do texto, mas na dedicatória que o prof. Róbson fez para mim, em meu exemplar do livro, na ocasião de uma apresentação do mesmo para a comunidade da filosofia.
Certamente, uma noção de “entusiasmo” pensada no enquadramento da fenomenologia hermenêutica seria uma noção muito especial e certamente contraintuitiva. Como compreender um entusiasmo que se experimenta em uma compreensão de si mesmo enquanto envolvimento com possibilidades sempre excedentes, negativas, irrealizáveis e que, no fundo, seriam expediente de sentimentos de estranhamento e de falta de domicílio? Como compreender esse entusiasmo paradoxal no qual ser quem se é seria, de certo modo, compreender a impossibilidade do descanso em identidades e estados definitivos? Como compreender esse sentimento de estar em casa precisamente na condição da profunda falta de domicílio? Um conceito existencial de entusiasmo, me parece, incluiria todas essas cláusulas sobre o possível na fenomenologia hermenêutica, cláusulas que podem operar como freio de mão contra as desmedidas euforias com as quais o genuíno entusiasmo não deve ser confundido. Mas estou apenas elucubrando. Esse é certamente um tema que eu gostaria de investigar e que, mais ainda, gostaria de ler já bem investigado pelo rigor avassalador do prof. Róbson. Provavelmente, esse texto “possível” seria mais um dos textos que ficaria por anos e anos em minha mesa de trabalho, sendo lido e relido com demora. Como vai ser o caso, provavelmente, do Necessidade existencial: estudos sobre a modalidade na fenomenologia hermenêutica, que está em pré-venda. Mesmo que eu só faça uma remota ideia do que esperar desse livro, tenho a sensação de que, uma vez mais, um livro desse estimado professor será uma espécie de marcador de uma época que, de certo modo, por meio da força normativa e silenciosa do possível, não cessa de começar e recomeçar.
Estou certamente tomando violentas liberdades hermenêuticas sobre o que penso que posso esperar do livro do prof. Róbson. De todo modo, ainda em Aspectos…, encontro amparo para o exercício dessas liberdades interpretativas que de tanta caridade precisam para fazer certo sentido. Penso aqui nas passagens sobre “um complexo elemento místico na estrutura justificacional da fenomenologia hermenêutica”, que não seria “ofensivo ou profundamente inconsistente” identificar na filosofia de Heidegger se por “mística” compreendermos “uma preparação para o encontro com algo que em geral se ausenta e, caso se dê, opera uma transformação na própria vida, sendo capaz de veicular comunicativamente um sentido”. Naquela que é provavelmente a passagem mais importante do livro para mim, o prof. Róbson declara o seguinte:
“De um lado, o adjetivo designa, inicialmente, o significado oculto no texto bíblico e a sua correspondente compreensão. Além disso, a vida mística designa uma jornada, e não um estado ou experiência, uma preparação para a presença de algo que não se dá à consciência de maneira usual, mas em geral está ausente. Mais ainda, a consciência, e não tanto a experiência, desse elemento que pode chegar a ser presente, abrange maneiras distintas de saber, e também de amar, em que a presença não é a de um objeto, mas como um centro que transforma a vida de alguém.”
O grifo é meu e acho que ele se justifica porque, de certo modo, a vida intelectual, no meio dos textos, dos livros, dos papers tem algo de jornada, de perpétua preparação para o encontro com algo que “em geral se ausenta” e que, quando se dá, caso se dê, é transformador. Se é “a consciência, e não tanto a experiência” desse elemento transformador que em geral se ausenta que importa, penso que essa consciência tem algo, se não muito, a ver com os possíveis que, em seu excesso, negatividade e irrealização, iluminam o presente com sentido. Evidentemente essa minha perspectiva extrapola e excede o sentido das páginas de Aspectos… que relaciono em minha apropriação do texto. Todavia, esse excesso e extrapolação se ampara tanto na consciência quanto na experiência de que a vida intelectual é repleta de ocasiões privilegiadas nas quais, com especial entusiasmo, compreendemos que nos sentimos em casa mesmo quando fora de domicílio, pois constatamos uma estranha e inesperada relação entre o habitar distâncias e a travessia de uma jornada que é história, história de preparação para o encontro com algo transformador enquanto indicador de novas formas de saber e de amar.
Mesmo que isso seja algo que, em geral, se ausenta.
Obrigado, prof.
, pelas fotos do prof. Róbson, que roubei.*Como já falei por aqui, por figalismo compreendo a necessidade de exibir publicamente o escândalo moral para com a já desde sempre tão conhecida biografia de Heidegger. O termo nasce de uma brincadeira com o sobrenome de um célebre scholar heideggeriano que, conforme descobri recentemente, estava há poucas semanas de se aposentar quando decidiu exibir publicamente seu escândalo para com alegações feitas pelo filósofo em escritos até então inéditos e abandonar uma cátedra da qual teria de sair de qualquer modo.
Muito bom!