Crítica da faculdade de sustentar
Um esboço incidental de um ensaio de algo que será apenas o próprio ensaio
Hoje, depois de alguns dias de ocupações e preocupações práticas, flagrei o nascimento de um pequenino pensamento na minha cabeça. O pensamento foi suscitado por um perfil lá no bluesky, rede para a qual correu todo mundo que ficou órfão da toxicidade do twitter. Lá tem um perfil muito, digamos, fofinho. Nem é um perfil, é um (fucking) bot. Um robozinho chamado Crítica Bot que, várias vezes por dia, posta títulos imaginários de críticas no estilo kantiano. Hoje ele postou duas das quais gostei muito. Uma delas seria a Crítica da faculdade de sustentar.
O verbo “sustentar” se me impôs nos últimos meses. Acho que essa é uma daquelas palavras que (adoro porque) dizem muitas coisas ao mesmo tempo. O adjetivo “insustentável”, por exemplo, vai no título de um dos meus romances preferidos, título que lembra que o peso pode ser insustentável mas a leveza também pode. Há quem diga que a tradução para o português é menos precisa que, por exemplo, insoportable levedad ou unbearable lightness. Mas, me parece, ganhar em precisão é, muitas vezes, perder em amplitude. E em beleza: até a fonética de “(in)sustentável” é mais gostosa. Fico com a sensação de que suportar está um degrauzinho mais perto da literalidade do que sustentar. Dá pra suportar um suplício, uma aflição, uma agonia, mas não dá pra sustentar uma tortura, por exemplo. Quem suporta aguenta, mas a coisa pode esmagar quem suporta. Sustentar também é aguentar um peso, mas é mais do que isso. É carregar com alguma estabilidade, quiçá até com alguma elegância. Arrisco, pois, o esboço de uma crítica da faculdade de sustentar.
Sustentar, me parece, é o que na gíria se diz com “bancar”. Quem sustenta banca uma escolha, uma posição, uma aposta. Quem sustenta paga pra ver, se resolve de modo refletido e mantém um projeto, uma promessa, um sonho. Sartre diz que minhas escolhas de ontem não me socorrem hoje, que preciso refazer a escolha de ontem para me manter o mesmo. Acho que é por aí, mas menos: a retomada reflexiva da escolha de ontem não é, como sugere Sartre, tão ex nihilo assim. Sugerir, em 2024, que a gente tem de se refazer, quem sabe até se reinventar todos os dias, tende a soar meio besta. Fica parecendo coisa de charlatão querendo nos vender algo que não existe para resolver um problema que só teremos se comprarmos o negócio. De minha parte, acho que a coisa é mais assim: a gente retoma e sustenta o caminho e a direção escolhida sempre que é instado, sempre que é constrangido a prestar contas de si, seja para si mesmo e/ou para os outros. Sustentar, aliás, tem de poder ser atestado. Quem sustenta deve poder dar testemunho de que sustenta ações, palavras, quem sabe até pensamentos. A liberdade — ontológica, para Sartre e, portanto, muito maior do que qualquer “faculdade” —, nesse sentido, é essa faculdade de sustentar, isto é, de bancar, manter e dar testemunho de que banca e mantém. A faculdade de sustentar, nesse sentido, acompanha o prosaico da vida e, de vez em quando, quando a isso solicitada ou constrangida, comparece na reflexão que renova, dobra ou, evidentemente, às vezes revoga os votos, contratos, apostas. Afinal, às vezes o preço da sustentação fica muito alto e a gente já não se vê mais capaz de bancar. Às vezes bate uma angústia e a gente pensa que não dá mais, que o único jeito de permanecer fiel a si mesmo é parar de sustentar o insustentável. Pois, claro, às vezes a coisa fica insustentável.
Por fim, pra não dizer que não falei das flores do mal, a própria faculdade de sustentar deve ser, ela mesma, insustentável. É o famoso tema dos groundless grounds, do fundamento sem fundamento: a faculdade que tudo sustenta não é e não pode ser sustentada por nada (e por isso, como talvez dissesse Sartre, é bom largar de mão esse vocabulário das “faculdades”). Ela pode até tentar se escorar nisso e naquilo, mas ela precisa ser sustentação de si mesma. Se ela pudesse ser sustentada por algo como, por exemplo, uma índole profunda, uma natureza íntima, um caráter essencial, etc, ela já não seria a faculdade de sustentar e a sustentação seria um efeito, um epifenômeno, uma superestrutura desse fundamento de todas as sustentações. No way: sem pretender fazer ontologia, dá pra brincar e dizer que estamos condenados a sustentar.
Sabe, tenho lido seus textos há algum tempo, talvez algumas semanas. Sentia falta da presença de ao menos um ensaísta brasileiro nessa plataforma e você apareceu, digamos, para salvar o meu dia. Não sei quão difícil é para você se manter em uma atividade que exige um razoável esforço - como é a escrita - para uma recompensa não equitativa, porém quero que saiba que suas grafias tem sido um ótimo entretenimento intelectual para mim (isso não significa que a profundidade em seus escritos é inexistente). Enfim, há três anos venho alimentando o germe da filosofia - esse parasita que implacavelmente nos desconforta todos os dias com uma vida reflexiva- dentro mim e fico feliz de saber sobre alguém como você que consegue tornar essa jornada um pouco mais leve e divertida para mim.