Criação de contextos
Segundo Schnädelbach, é difícil imaginar que alguém designe a si mesmo como historicista
Na época da graduação — e, principalmente, durante os cinco anos em que lecionei história da filosofia moderna e contemporânea —, brinquei muito com um livro de Herbert Schnädelbach, intitulado, em sua tradução para o espanhol, Filosofía en Alemania (1831 - 1933). As datas que vão no título do livro correspondem, respectivamente, ao ano da morte de Hegel e ao ano da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. FeA reúne o melhor de dois mundos em termos de abordar ideias filosóficas: é uma abordagem histórica de certos temas do pensamento filosófico. Trata-se, em suma, de dizer o que aconteceu entre o fim da grande Filosofia, com maiúsculo, que viu vinte e cinco séculos de tradição especulativa desmoronar junto com o descrédito e desprestígio do idealismo hegeliano, e uma certa nova aurora do filosofar, no século XX, que coincidiu cronologicamente com o início de alguns dos anos mais sombrios da história do nosso mundo. Não é sempre que a gente vê a articulação entre a sensibilidade propriamente filosófica e a sensibilidade historiográfica como a exibida no livro de Schnädelbach. Por essas — e outras — razões, peguei emprestado um exemplar velhinho e amarelado de outro livro do mesmo autor, intitulado La Filosofia de la História despues de Hegel: el problema del historicismo.
Primeiro e antes de tudo, preciso registrar que o historicismo, para mim, é muito menos um problema do que uma solução. Sem um pouco de historicismo suave a gente tende a resvalar na ladeira da nostalgia intelectual e achar, como por muito tempo se achou, que o pensamento pode encontrar estruturas firmes e imunes às vicissitudes que o tempo a tudo inflige. Um historicismo suave, portanto, é uma espécie de recurso imunológico, para usar o vocabulário de Sloterdijk. Como uma vacina, o historicismo suave nos previne de sintomas como o delírio febril com o encontro e a conquista de verdades eternas e certezas definitivas, coisas que podem até servir bem como crenças, no sentido sartreano de crença, mas tendem a atrapalhar o pensamento. Para este filósofo francês, o ideal da crença é justamente o descanso do pensamento em verdades eternas e certezas definitivas. Todavia, a crença que proporciona esse tipo de descanso não é obtida por nenhuma evidência, seja racional ou empírica, mas por uma decisão acerca da natureza da verdade e, portanto, do que conta como evidência. Tudo se passa como se, portanto, na filosofia ou no amor, nós decidíssemos o que é a vida, a realidade e a verdade. Optamos por uma imagem de mundo que nos convenha e disfarçamos essa opção sob a rubrica de que estamos convencidos, persuadidos, constrangidos por algum tipo de evidência. Do contrário, teríamos de reconhecer que nosso crer é, na verdade, um apostar que o mundo é mesmo do jeito que a gente gostaria que fosse e pagar para ver — coisa que, como se sabe, é muito angustiante. Tudo isso parece muito psicanalítico e de fato, como também se sabe, Sartre inventou sua própria psicanálise. De todo modo, o historicismo suave — isto é, o reconhecimento de que o mero curso do tempo inviabiliza a construção de verdades eternas sobre dunas feitas de permanente mudança — é, me parece, a introdução daquilo que Milan Kundera chamou de sabedoria da incerteza em nossas decisões sobre o que é a vida, a realidade e a verdade.
Na introdução de seu La Filosofía…, Schnadelbach recupera o estado da discussão sobre filosofia da história antes de Hegel. Kant já tinha suas opiniões sobre o que conta como conhecimento histórico, por exemplo. Uma história geral ou universal seria qualquer coisa como o contexto geral de todos os contextos específicos nos quais algo é realizado ou acontece. O saber histórico deve, portanto, ser capaz de criar contextos nos quais os acontecimentos e ações se mostrem compreensíveis. Assim, Schnadelbach se nos pergunta: “¿qué significa «creación de un contexto»?”.
Muitos anos antes de entrar na faculdade de filosofia, eu ganhei um videogame e joguei um game chamado Metal Gear Solid. Era uma espécie de simulador de espionagem que possuía um enredo que envolvia ameaças nucleares e manipulação genética. O enredo era a graça do jogo e (lá vem spoiler) encontrava seu desfecho em uma cena que contava com uma geneticista fazendo um longo discurso sobre o valor da liberdade e das escolhas individuais. Tudo muito ianque, naturalmente. Anos depois, joguei o segundo jogo da série. Já estava na faculdade de filosofia e senti a atmosfera “pós-moderna” do enredo desse segundo jogo. De modo meio profético (o jogo foi lançado em 2001, em tempos que nosso mundo virtual era um modesto esboço do que é hoje), o roteiro da narrativa que embasava o game oferecia, no fim, um plot twist por meio do qual descobríamos que o superior do agente que o player controla — isto é, o coronel que nos dá as missões e orientações —, na verdade, não era senão uma inteligência artificial que simulava a imagem e a voz do coronel na telinha da bugiganga fictícia de comunicação por meio da qual o protagonista conversava com ele. Essa inteligência artificial, relativamente autoconsciente, revelava enfim suas intenções despóticas, autoritárias, totalitárias: a humanidade é meio besta e precisa ser guiada ou vai se exterminar sozinha. Tudo muito, muito ianque. Quando o protagonista reage, com a ingenuidade dos heróis de filmes de ação, e diz que essa inteligência artificial quer (!?) controlar a sociedade e privar as pessoas de suas liberdades, a inteligência artificial diz que não quer “controlar” nada em sentido estrito, mas que basta apenas “criar contexto”. Segue minha tradução mais ou menos livre dessa fala da inteligência artificial:
“A sociedade digital promove as falhas humanas e recompensa seletivamente o desenvolvimento de meias verdades convenientes. Basta olhar para as estranhas justaposições da moralidade ao seu redor. Bilhões gastos em novas armas para assassinar humanamente outros humanos. Os direitos dos criminosos são mais respeitados do que a privacidade das suas vítimas. Embora existam pessoas que sofrem na pobreza, enormes doações são feitas para proteger espécies ameaçadas. Todo mundo cresce ouvindo a mesma coisa. ‘Seja legal com as outras pessoas.’ ‘Mas vença a concorrência!’ ‘Você é especial.’ ‘Acredite em si mesmo e você terá sucesso.’ Mas é óbvio, desde o início, que apenas alguns conseguem ter sucesso. Você exerce seu direito à ‘liberdade’ e este é o resultado. Toda retórica para evitar conflitos e proteger uns aos outros de mágoas. As verdades não testadas, tecidas por diferentes interesses, continuam a se agitar e a se acumular na caixa de areia do politicamente correto e dos sistemas de valores. Todos se retiram para seus pequenos condomínios fechados, com medo de um fórum maior. Eles ficam dentro de seus pequenos lagos, vazando qualquer ‘verdade’ que lhes convenha na crescente fossa da sociedade em geral. As diferentes verdades fundamentais não se chocam nem se misturam. Ninguém está invalidado, mas ninguém está certo. Nem mesmo a seleção natural pode acontecer aqui. O mundo está sendo engolido pela ‘verdade’. E é assim que o mundo acaba. Não com um estrondo, mas um gemido. Estamos tentando impedir que isso aconteça. É nossa responsabilidade como governantes. Assim como na genética, informações e memórias desnecessárias devem ser filtradas para estimular a evolução das espécies.”
Esse game foi lançado, repito, em 2001. Contudo, não está delineado aí o plot do drama que vivemos nos últimos anos? “Quem mais poderia percorrer o mar de lixo que vocês produzem, recuperar verdades valiosas e até mesmo interpretar o seu significado para as gerações futuras?”, pergunta a inteligência artificial para o protagonista. Quem mais poderia interpretar por nós, não é mesmo? Penso nisso e lembro que Heidegger disse que somente um Deus poderia nos salvar. Quase um quarto de século depois do lançamento do segundo jogo da série Metal Gear…, acho que cabe que reflitamos um pouquinho sobre a criação de contextos dentro dos quais as boas narrativas não circulem por aí, nesse mar de lixo informacional, indiscerníveis do lixo propriamente dito.
Para um espaço (e um dono) que se intitula “narrativista”, acho que muito pouco falei sobre narrativismo por aqui. Essa palavra, assim como “historicismo”, é o nome de um problema que, para mim, parece uma solução. Para Paul Ricoeur, certamente, o narrativismo era, de certo modo, um problema. Por “narrativismo” se designava, nos anos 70 e 80, posições epistemológicas como as de Hayden White. Tenho lido a famosa Meta-História desse autor e confirmado o que a glosa comum tende a dizer sobre ele — e que ele próprio confessa —, a saber, que ele aplica categorias da crítica literária e da narratologia (!?) sobre historiadores e filósofos da história do século XIX. O resultado disso é que Hegel, Marx, Michelet, Burckhardt, enfim, todo mundo que narrava ou pensava a história no século XIX operava, sem perceber, em esquemas de pensamento ou narração mais ou menos parecidos com aqueles posteriormente propostos por Northop Frye em sua análise dos textos literários em Anatomia da crítica. Dizendo de modo um pouco mais contundente, a historiografia e a filosofia da história operaria com esquemas literários e poéticos para tecer suas tramas reflexivas ou narrativas. Para mim, o que parece interessantíssimo é justamente o reconhecimento de um certo trabalho da imaginação na composição da reflexão ou da narrativa, isto é, a percepção de que há um elemento de criação e decisão sobre o modo de pensar ou contar uma história que, no limite, não é acessório ou cosmético, mas constitutivo da representação dos acontecimentos — da própria criação de contextos. Infelizmente, porém, muitas passagens de Meta-História são muito ianques e o que se nota no texto é a reclamação de White para com esse estado de coisas. Tudo se passa como se essas decisões de configuração narrativa fossem um defeito residual de uma disciplina em estado ainda meio pré-científico. Como bem observa Ricoeur, em Tempo e narrativa, White & afins parecem sugerir que o estágio de configuração da narrativa — isto é, o fato de que ela é e precisa ser elaborada e composta de algum modo — devesse ser coordenado por algum tipo de protocolo científico definitivo, como se isso também não fosse um modo de configurar as narrativas. Uma decisão, portanto. Em suma, o aspecto poético e literário que acompanha a configuração das narrativas faria da historiografia uma espécie de gênero literário, “meramente” literário que, a despeito dos “efeitos” de explicação proporcionados por diversas “estratégias” narrativas e argumentativas, impediria que essa disciplina fosse um saber. Textos históricos seriam, pois mera narrativa. Eis o narrativismo, em seu sentido problemático. Um leitor muito anglophonic minded dessa epistemologia ianque poderia, quem sabe, sugerir que toda história é fake news — ou, talvez melhor, fake olds. Uma hegemonia cultural desse jeito de compreender os saberes históricos, me parece, terminaria meio que promovendo um cenário fértil para revisionismos e negacionismos.
Aliás, as coisas já não estão meio que assim?
Eles venceram, e o sinal está fechado para nós, que já não somos mais tão jovens mas também não somos suficientemente anglophonic minded para comprar uma perspectiva tão restritiva do que conta como verdade. Quero observar que White também dá seu jeitinho de se aproximar do século XIX sem pagar alguns pedágios. Embora até apareça uma ou outra coisinha em alemão nas referências bibliográficas de Meta-História, não há, por exemplo, nenhuma obra de Hans-Georg Gadamer nelas. Aliás, em Meta-História não há nenhuma referência ao autor, nem (obrigado, Técnica) nenhuma ocorrência de hermeneutics, por exemplo. Tratar dos alemães do XIX desviando completamente de Gadamer e da hermenêutica é, sem dúvida nenhuma, uma decisão. Desviar de um confronto com a perspectiva epistemológica representada pela hermenêutica, absolutamente aberta para e constituída por uma sensibilidade para a verdade na arte e na história é, me parece, uma notória criação de contexto para a sustentação de certas teses. Quem me conhece (e me aguenta) sabe o quanto eu penso que essas criações de contexto por meio da seleção da bibliografia são frequentes, comuns e que não são tão disfarçadas quanto parecem. Lançando mão de uma evidência anedótica (que certamente irrita quem pensa e vive em contextos meio ianques ou totalmente anglophonic minded), basta consultar o verbete sobre personal identity da Stanford Enciclopedia of Philosophy. O verbete (atualizado pela última vez em 30/06/2023) cita 9 (nove) trabalhos de Sydney Shoemaker, falecido professor da Cornell University, nascido no Idaho e formado na mesma universidade em que lecionou, situada em Ithaca, estado de New York. Não há nenhuma menção a qualquer trabalho — ou ao nome — de Paul Ricoeur no verbete. Os enciclopedistas, portanto, como White, parecem tomar precisamente o tipo de decisão que, de certo modo, todos tomamos meio que o tempo inteiro porque somos condenados a tomar, embora não sejamos condenados a assumir que tomamos. Assumir o caráter incontornável dessas decisões por certos contextos, contudo, só parece poder ser assumida em perspectivas muito especiais — e nas quais, me parece, formas suaves de narrativismo e historicismo estariam em casa, do mesmo jeitinho que o sonho com certezas e verdades evidentes encontrou seu lar em um anglophonic minded world.
Três páginas depois de se perguntar sobre o que é a criação de contextos, Schnadelbach declara que também “cabe preguntarse si la forma como un acontecimiento es visto está también totalmente determinada por el acontecimiento mismo o si éste está primordialmente condicionado por nuestra perspectiva”. Na primeira perspectiva — a de que o próprio acontecimento determina sua recepção — estaríamos em um anglophonic minded paradise, no qual bastaria soterrar os indivíduos e grupos em boas informações, em fatos checados, em suma, em evidências empíricas e racionais por meio das quais elas seriam, me parece, dispensadas de pensar e de decidir. Sim, de decidir: uma conduta que seguisse de modo automático e otimizado uma evidência já não teria quase nada em comum com o que chamamos de decisão, se assemelhando muito mais ao procedimento de uma engine de xadrez. Na segunda perspectiva, teríamos de aprender a pensar naquilo que Gadamer chamou de pré-conceitualidade, por exemplo, enquanto expediente constituinte da moldura por meio da qual interpretamos o mundo. Teríamos que, como o historiador Reinhart Koselleck, lidar com o paradoxo de que, na historiografia — e talvez na vida — somos condenados a tentar “fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a relatividade delas”. Teríamos que, conforme o convite de Ricoeur, cultivar a coragem do luto contra a tentação da nostalgia e, assim, renunciar a qualquer expediente discursivo que nos venderia caro alguns contextos com a promessa de que estes seriam os melhores, mais evidentes e mais racionais. Concordo plenamente com Schnädelbach quando este declara que “es difícil imaginar que alguien se designe a sí mismo como historicista”. Eu mesmo não acho nada fácil sustentar que um pouco de historicismo suave é uma das poucas maneiras de escapar da armadilha em que nossa teimosia metafísica nos meteu. Acho bem mais fácil imaginar — e, eventualmente, constatar — um mundo em que alguém se sinta aliviado ao poder terceirizar sua capacidade de decidir, interpretar e criar para um chatbot qualquer.