Em 19 de junho de 2019, um usuário do twitter, que assinava Aaron Paul Sullivan, fez uma postagem que viralizou, tendo até hoje sido curtida quase 60 mil vezes e retuitada mais de 15 mil. Ele disse que “só é existencialismo se vier da região existencialista da França. Caso contrário, é apenas uma ansiedade borbulhante, efervescente”. O grifo e a tradução são de minha parte. Mais de uma pessoa me mostrou esse tuíte na época e, se bem me lembro, declarei que o autor estava corretíssimo. De certo modo, simplesmente não dava pra ser existencialista em 2019 em Tucunduva, Biriguí, Iguaba Grande, em Governador Valadares, exceto em algum sentido muito especial do termo. E que sentido seria esse? Pois eu não sei bem, mas tenho cá comigo uma suspeita de que tenho uma pista. Esse sentido seria mais ou menos o que esta artista, chamada Alexandra Yvette (doravante apenas Yvette), sugere que faz quando lhe dizem que ela não é uma uma cabaret performer na Paris dos anos 1920s:
É claro que Yvette sabe muito bem que não é uma cabaret performer e que não está nos anos 20, por mais que em seu site pessoal, ao que parece, ela dedique muita energia ao estilo que parece muito amar, mesmo que ele esteja meio fora de lugar, como diz o título de um famoso livro de Roberto Schwarz sobre o caráter essencialmente deslocado de algumas ideias europeias no Brasil. Essa é, me parece, precisamente a sabedoria do chiste de Sullivan, mencionado no começo do texto. Acho que a associação entre as mensagens de Sullivan e Yvette tem uma valência toda especial no caso do existencialismo que, como as performances nos cabarés (bem perto delas, vale dizer), não é só um conjunto de ideias mas, também — se não principalmente —, um certo estilo. Annie Cohen-Solal, em sua célebre biografia sobre Sartre, usa a expressão “estilo de vida” para falar do que foi o existencialismo, a moda existencialista na primeira metade do século XX. Philip Thody, noutra biografia, fala claramente em certo proselitismo na atitude pessoal de Sartre e em seu estilo de vida. Joseph Fell, em seu Heidegger and Sartre, declara que é filosoficamente importante ter em mente as diferenças entre Heidegger e Sartre em termos de estilo de vida. O próprio Sartre, em seu Diário de uma guerra estranha, naquelas que são para mim as páginas mais importantes do livro, que datam do dia 2 de dezembro de 1939, parece estar falando sobre a realização de um certo estilo de vida quando diz que “queria, com obstinação e sem perceber, realizar entre 1920 e 1960 uma vida de 1830”, isto é, uma vida de escritor, como pareciam ser as vidas dos grandes escritores que leu na biblioteca de seu avô. Sartre percebia que seus sonhos pessoais com uma vida de escritor e digna de ser biografada incluía mesmo ser uma boa pessoa, mesmo que, vejam só, por razões estéticas. “Eu seria moral para realizar a vida mais bela e não pela moral em si”, diz Sartre nesse 2 de dezembro. Considerando que isso era uma maneira alienante de viver e travando uma cruzada pessoal contra essa alienação na própria aventura pessoal, Sartre rejeitou essa ideia e a chamou de ilusão biográfica. Na minha tese de doutorado, acolhi essa ideia e vi nela um traço do que chamei de desejo de viver belas histórias. Diferentemente de Sartre, acho bem legítimo e razoável o desejo de viver belas histórias — ou, como Yvette, belos stories. Mesmo que essa história eventualmente envolva ideias e estilos meio fora de lugar, como o existencialismo.
Nesse fim de semana conversei significativamente com algumas pessoas que conhecem o pensamento de Heidegger bem melhor do que eu (abraços André, Gabriel, Pedro e Marli). Uma das razões das conversas foi o fato de que mostrei uma proposta de comunicação, redigida por mim, sobre o pensamento de Heidegger. Ouvi comentários e sugestões muito interessantes. Também não pude deixar de pensar sobre o incontornável fato de que minha “recente” aproximação do pensamento de Heidegger obedece a mesma lei da minha formação mais geral, a saber, uma certa coceira, como diz o querido professor
. Na minha história pessoal, a coceira precede a agenda e só de modo muito raro e casual minhas obsessões pessoais coincidem com assuntos mais amplamente discutidos nas universidades e seus arredores (e quando há essa coincidência, vale dizer, ela nem sempre é boa: quando percebi que minhas pesquisas sobre “identidade pessoal” admitiam conexões com debates mais amplos, agressivos e intransigentes sobre “identidade” em geral, fui perdendo o gosto de pensar no assunto). Esse comichão por algumas coisas que Heidegger diz me levou a ouvir mais de uma vez (uma delas neste fim de semana) uma entrevista de um outro querido professor na qual este menciona que uma das grandes dificuldades da obra de Heidegger é o fato de que para muitos de seus intérpretes, essa obra não demanda ser estudada como outros livros de filosofia, mas que teria qualquer coisa de caminho por meio do qual se operam legítimas transformações nas vidas. Adequadamente lida, a filosofia de Heidegger aparece como expediente de transformação da compreensão ordinária de alguém porque, nessa interpretação, a filosofia não é apenas uma profissão, uma atividade acadêmica, mas seria algo maior (esse trecho da entrevista pode ser ouvido aqui).Pensei um pouco sobre isso e me dei conta de que essa observação meio que vale para todas as filosofias das quais realmente gostei. Foi assim que li Schopenhauer e Nietzsche, talvez as presas mais fáceis desse tipo de enquadramento. Mesmo a obra de Paul Ricoeur, escrita de modo tão profissionalmente e academicamente contemporâneo, parece se prestar a esse tipo de acusação, por mais que as transformações que ela sugira sejam bem menos excelsas e grandiloquentes do que as que parecem se depreender dos alemães acima citados — e frequentemente se vê, em comentários ao seu pensamento, a reclamação de que as partes descritivas de suas teorias funcionam muito bem, obrigado, sem esse embutido de pequena ética que ele sempre tenta vender junto com elas. No caso de Sartre, acho que a coisa é ainda mais gritante e explícita, especialmente quando ele trata diretamente do tema, em 1957, ao comentar o período em que lia Marx, em 1925, com um padre segundo o qual era possível ler Marx “com tanta segurança quanto se estuda o de outro filósofo ou sociólogo”, sem temer transformações. Absolutamente! Para Sartre, “compreender é modificar-se, ir além de si mesmo”, como bem o sabem papais e mamães de jovens que entram em cursos de humanidades: lá suas criancinhas serão expostas ao mundo dos livros de uma forma que poderão sim se modificar. Os perigos da sala de aula e as preocupações dos papais e das mamães com relação a esses perigos podem mesmo se tornar uma questão política, tema que o já mencionado prof. Ronai muito bem explorou em seu Escola Partida, cuja leitura indico com entusiasmo. Para o momento, quero apenas enfatizar essa compreensão que todos temos de que certos livros e, dentre eles, os livros de filosofia — mas também os romances, mas também alguns filmes e, claro, estilos musicais… — podem, sim, transformar alguém, que podem levar alguém a pensar que é um romancista dos anos 1830s, uma cabaret performancer dos anos 1920s ou um existencialista dos 1940s. Na melhor das hipóteses, isso pode ser vivido com a leveza de uma performance de estilo que, mesmo fora de lugar, não vai ter lá grandes consequências, sendo algo da família dos jogos, das brincadeiras, das encenações e dos entretenimentos pouco sérios. Na pior, isto é, quando alguém adere demais as páginas dos livros e, em vez de habitá-las, se refugia nelas, os livros podem sobreadaptar alguém e fazer com que alguém projete sobre o mundo expectativas absolutamente irrealizáveis, incompatíveis com o presente e seus futuros disponíveis. Como observa o professor Ernildo Stein em algum de seus livros que não é o mesmo do qual tomo de empréstimo o conceito de “sobreadaptação”, o próprio Heidegger, de certo modo, parece ter sido alguém que exigiu demais de si mesmo nessa direção. É a mesma impressão de Sarah Bakewell que, em No café existencialista, fala da dificuldade que Heidegger tinha de conversar com quem não habitasse mais suas ideias do que o mundo fora delas, como ele próprio. Sobre isso, paro por aqui porque esse assunto pode levar a outros muito saborosos para quem tem paladar juvenil e predileção pelo escândalo.
Na minha relação pessoal com filosofia, acho que estou mais com Rorty do que com Aristóteles porque acho que as ideias daquele sobre a natureza ou o estatuto da filosofia estão mais dentro de lugar que as deste. Com a vantagem de mais de vinte séculos de proximidade conosco, Rorty fala da filosofia sendo algo como uma — e apenas uma — voz na praça pública do que como aquilo que, conforme o filósofo antigo, não só é uma atividade boa por si mesma como, além disso, é o que mais plenamente realiza a natureza humana. Acho que além de cafona — muitas das pessoas excessivamente comprometidas com a filosofia nesse sentido ficam não só sobreadaptadas mas, às vezes, insuportavelmente afetadas nas palavras e nos gestos —, a ideia de que a filosofia é a atividade mais excelente e mais própria aos seres humanos é até meio perigosa porque é justamente um caminho para uma vigorosa sobreadaptação. Evidentemente não acho que a filosofia seja só uma profissão e já me vi incomodado com pessoas que estudavam os mesmos assuntos que eu mas não se mostravam nem um pouco entusiasmadas, envolvidas com o que faziam e implicadas no que diziam. Mas deve haver um caminho entre a sobreadaptação dos que supõem poder, de modo solene, se declarar “existencialistas” na América Latina do século XXI e a ideia de que os assuntos filosóficos são cousa meramente acadêmica, científica, profissional. O que me lembra que semanas atrás, meu supervisor observou que eu parecia demasiado bem humorado demais para acreditar mesmo em certas ideias existencialistas. Esse tipo de cena é algo curioso e diferente de tudo o que já me aconteceu em meu percurso da filosofia: dificilmente um professor me perguntou se eu acreditava naquilo que estava apresentando. A capacidade de distanciamento do texto é certamente algo da ordem das capacidades desenvolvidas no treinamento profissional em filosofia. Dizem que a filosofia é uma coisa sem a qual o mundo permanece tal e qual. Dá pra dizer que no âmbito do ofício docente a opinião — a posição pessoal, a crença, a convicção — é uma coisa sem a qual a filosofia permanece tal e qual. Respondi ao meu supervisor com uma ideia que andou me ocorrendo, a saber, a de que faço filosofia do mesmo jeito que ensaiam os atores que se servem do “sistema Stanislavski”. Em outras palavras, eu entro no personagem — e fico nele na maior parte tempo, claro —, mas disso não se depreende nenhum compromisso com o papel. É claro que essa visão acerca das próprias práticas, das próprias performances, aponta para um conjunto de coisas que, na falta de nome melhor, podem ser chamadas de opiniões, crenças ou convicções. Falar delas, contudo, não só seria aborrecido como também acho que não é lá coisa que se faça, especialmente em público, como aqui. Sempre achei meio indelicado e meio obsceno quem gosta muito de falar sobre as coisas que estão nas próprias cabeças e que, de certo modo, segundo uma ontologia mais materialista ou fisicalista, simplesmente não existem.
É claro que às vezes um pouquinho daquilo que a gente pensa acaba borrando um pouco as coisas que a gente escreve, especialmente quando se teve uma formação meio selvagem e da qual se depreendeu a ideia de que dá pra substituir a glosa, o comentário e a exegese pelo uso das ideias dos outros como elementos das próprias. Nesse fim de semana, por exemplo, um dos resumos que escrevi falava um pouco do deserto, tal qual pensado por Fernando Pessoa. Interessam-me especialmente estes versos:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Essa imagem me persegue há anos porque acho que ela funciona suficientemente bem para explicar o que é o mundo de uma maneira fenomenológica. O mundo no qual, portanto, em certo sentido muito especial, Yvette é uma cabaret performer e eu sou “existencialista”. Eu utilizava a metáfora do deserto quando lecionava para jovens candidatos ao sacerdócio católico porque sabia que eles conheciam a fábula sobre as casas edificadas na rocha e na areia. Diante da chuva, dos ventos e dos alagamentos, a casa edificada na rocha se mantém firme enquanto aquela edificada na areia desmorona, desaba, colapsa, talvez seja mesmo engolida pela areia como se nunca tivesse existido. No meu esquema pessoal de explicação das filosofias existenciais, eu achava que uma das melhores estratégias era a de compará-las com o esquema da metafísica. Então eu desenhava um triângulo, com um vértice superior sobre uma base horizontal, para representar a metafísica e apenas a linha horizontal inferior para representar o pensamento da finitude. Em um dos vértices inferiores eu desenhava o ser humano (um boneco de palitinho), no outro eu desenhava o mundo (uma bolinha) e em cima eu fazia um outro triângulo (o fundamento que criava ou emanava a grande cadeia dos entes, isto é, Deus). No esquema da metafísica, o estatuto ontológico da base do triângulo era sólido porque participava da criação ou emanação desde o fundamento. A densidade ontológica, portanto, se derramava das alturas nas quais estaria pendurado o solo em que pisamos. No esquema da finitude, sem Deus, sem fundamento, tudo é deserto, como disse o heterônimo de Pessoa. Era o que eu propunha para os estudantes: tudo é deserto porque as edificações humanas não disfarçam o solo, o tal solo que é tudo e no qual tudo submerge quando chove, venta e nos alaga alguma experiência privilegiada. É sobre desertos fundamentais que edificamos e erigimos tudo aquilo feito de luz, sentido e palavra, mais ou menos como Borges, segundo Carlos Fuentes, teve de inventar imensos e complexos mundos para compensar o vazio do pampa liso e aparentemente interminável, que se estendia de horizonte a horizonte. Uma das pessoas que leu meu resumo me perguntou sobre a natureza desse “deserto” e se quero devolver o deserto aos poetas, já que as gentes de ação erigiram sobre eles tantas cidades de concreto, vidro e aço. Ainda estou pensando nessa questão, já que em um primeiro momento — e agora fora, longe, o mais longe possível de uma ontologia meramente fisicalista, de uma ontologia da mera subsistência — não me parece que as cidades de concreto e aço sejam tão sólidas assim, dado que o que as mantém coesas, em um especialíssimo sentido, é qualquer coisa da ordem do que não existe (fisicamente, materialmente), isto é, o sentido. A rigor, desde que Deus nos abandonou, a densidade ontológica das coisas nunca mais foi sólida como de certo modo são o concreto, o vidro e o aço. Às vezes me parece é que estes é que disfarçam certa imaterialidade, certa translucidez, certo caráter fantasmagórico, etéreo, virtual. As cidades, de pedra ou de palavra, de concreto ou de sentido, se erguem e desmoronam. O deserto permanece. O solo e os horizontes sempre permanecem. É nas cidades que se erigem sobre o solo, no interior dos horizontes, que as coisas podem estar, por algum tempo, no próprio lugar. E depois fora de lugar, que ainda é algum lugar melhor do que lugar nenhum.
Fica cafonérrimo quando a gente se expressa com muita sinceridade, não é mesmo? Não era só dizer que apenas aço, concreto e vidro não faz um cabaré? Prometo que daqui para a frente vou evitar tanta sinceridade cafona. Vou concluindo e lembrando que em algum momento Beauvoir conta que Sartre se interessou pela fenomenologia porque ela poderia ser “uma filosofia que tratasse das coisas do modo como elas o tocavam”. Algo que parece bem mais divertido do que a mera prática da argumentação e da objeção, não é mesmo? Eu acho que é. De todo modo, é importante não se distrair, não cochilar e não acabar caindo na bobagem de que podemos ser, sim, de verdade, como se estivéssemos no lugar de sermos mesmo artistas de cabaré e existencialistas, como se a vida fosse algum musical vintage qualquer. Quanto mais a gente cochila, mais nossas cidades são mais facilmente recobertas pelas areias sobre as quais foram construídas e com as quais vão se confundindo, no vento, tanto o concreto quanto as palavras.
Dedico esse texto para minha amiga Lauren. Porque ela está de aniversário e porque já fomos juntos muitas coisas no grande cabaré que ocupa quase toda a superfície do grande deserto, nesses quase-quase vinte anos de amizade.