Há mais de 80 anos, em 1943, Sartre nos avisava, no início de O ser e o nada, que enfim havia acabado “a ilusão dos trás-mundos”. Em outras palavras, havia acabado a separação entre os fenômenos (tal como nos aparecem) e as coisas em si (tal como seriam para além do nosso acesso a elas). O fenômeno não era, afinal, um véu de Maia, como disse Schopenhauer. O fenômeno apontava para si mesmo, indicava a si mesmo, como uma estranha placa de sinalização na qual estivesse escrito “placa de sinalização”. Quase 40 anos depois, em 1982, Jean Baudrillard nos avisava que havíamos entrado na era dos simulacros e das simulações. A imagem, segundo Baudrillard, teria passado por quatro fases de uma história. Nascida como “reflexo de uma realidade profunda”, passou a mascarar e deformar a realidade, depois mascarou a ausência de uma realidade e, enfim, em 1982, ela já não teria qualquer relação com a realidade. Simulacro, portanto, como o fenômeno fenomenológico sartreano, seria uma aparência que aponta para si mesma e apenas para si mesma, em um ambiente de causalidade relativizada (de efeitos sem causa e, talvez, daquilo que Žižek viria a chamar de gestos vazios e performativos, isto é, sem efeitos) e baixa densidade ontológica. Todavia, o que era libertação em Sartre se transformou em catástrofe em Baudrillard. Se Sartre insistiu que o existencialismo era um humanismo, Baudrillard não teve melindre ou vergonha de se reconhecer, em certo sentido, como niilista, alcunha da qual os existencialistas — confessos ou por maioria de votos, como Heidegger e Camus — fugiram.
Ricoeur é mais prudente e evita decretar que isso ou aquilo é catástrofe ou libertação — como, por exemplo, em sua perplexidade pela rápida ascensão e queda do idealismo alemão que, caindo, derrubou consigo um jeito de fazer filosofia que, de certo modo, tinha durado mais de vinte séculos. Um binômio como esse, formado pela catástrofe e pela libertação, dá a pensar, em uma tarefa inacabável. Ricoeur, aliás, gostava de tarefas, de esforços: somos imbuídos de um “desejo de ser” que se traduz em um “esforço por existir”, dizia ele n’O conflito das interpretações. Conforme mencionei ontem, em um encontro on-line, em O si-mesmo como um outro, Ricoeur faz um elogio do esforço da manutenção de si e, eventualmente, dá uma espetada em comportamentos obstinados. O obstinado tem um traço demoníaco, vai dizer Ricoeur em Percurso do reconhecimento. Em suma, o obstinado não se esforça pra ser quem é, é fácil se deixar levar por aquilo que, nos imbuindo, nos domina. Manter a palavra e cumprir a promessa, todavia, é difícil. A palavra ipseidade — a mais linda da língua portuguesa para mim —, amada por Ricoeur, designa um esforço de manutenção de si, de perseverança. É difícil se manter a mesma pessoa no tempo, isto é, fiel a si e a história que constitui esse si. Sartre, por sua vez, que também gostava da mesma palavra, parecia ver nela um expediente de mudança, de ruptura, de despojamento dos traços identitários por meio dos quais, por exemplo, alguém se supunha essencial, insubstituível, especial e único, fosse para uma função, fosse para um relacionamento pessoal, como os relacionamentos amorosos. Instância de designação de uma liberdade, a palavra ipseidade, em mais ou menos 50 anos (O ser e o nada é de 1943, O si-mesmo como um outro é de 1990), muda de sinal: deixa de designar um esforço de mudar e passa a designar um esforço para perseverar.
Ainda com meus queridos Sartre e Ricoeur — e sem dizer nada que eu não tenha dito por aí —, a questão da promessa. Para Ricoeur, prometer é desafiar o tempo. Uma promessa é promessa do cumprimento da própria promessa, a despeito da eventual mudança de nossas inclinações. Sartre, em O ser e o nada e em Diário de uma guerra estranha (escrito um pouco antes do tratado de filosofia e em grande medida seu esboço) diz que uma promessa é “uma confissão”, uma confissão de sofrimento, de desespero. Em suma, se a gente chegou até o ponto de, com toda a credulidade do mundo acerca do cumprimento da promessa, prometer algo a alguém, isso por si já é indício suficiente da falta de inclinação, de desejo, de vontade de cumprir a promessa. Uma autêntica promessa — isto é, uma promessa feita com toda a lúcida consciência acerca da indeterminação que se depreende de nossa liberdade ontológica e da responsabilidade absoluta que temos pelo que somos porque somos tudo o que fazemos, incluindo as promessas — seria, me parece, uma promessa que pudesse ser feita em um horizonte no qual o receptor da promessa deveria poder compreender como vão desafio ao tempo. Promessas — como expectativas, projetos, sonhos — só organizam o presente. Tudo se passa como se promessas fossem para ser prometidas, não para ser cumpridas. Mais ou menos como os flertes que, segundo Milan Kundera, são promessas sem garantia. Nada mais distante do laço que Ricoeur compreende como sendo constitutivo e insuperável das relações intersubjetivas que constituem nossa ipseidade em seu núcleo mais íntimo.
Todavia, Ricoeur é um fenomenólogo. Ele enxerta hermenêutica em sua fenomenologia, é verdade, mas é pode ser encarado enquanto um fenomenólogo. Gosta da experiência viva que dá semblante humano às instituições justas nas quais podemos — ou deveríamos poder — ter boas vidas, com e para os outros. Como conciliar esse clamor por fidelidade e credulidade de sua filosofia da promessa com uma fenomenologia que, se minha provocação inicial tiver algum sentido, nos oferece apenas a chance de habitar propriamente um mundo de simulacros e simulações? Nesse mundo, as promessas são para ser cumpridas ou devem poder, conforme os ensinamentos de todos aqueles que falaram da aporia do ser e não-ser do tempo — Agostinho e Koselleck, por exemplo, mas também, talvez, Sartre —, ser encaradas enquanto promessas, isto é, para que sejam prometidas e, por meio do ato de fala que promete, organizar um presente que não pode, em nenhum sentido, desafiar o tempo? Lembro do desconcerto de Ricoeur ao falar d’O homem sem qualidades, de Robert Musil, que saracoteia daqui para acolá sem crenças, sem convicções, sem comprometimentos, falando tudo por falar, fazendo tudo por fazer, deslizando sem aderência por um mundo feito de qualidades sem seres humanos. Ulrich, o homem sem qualidades, tem um senso tão elevado do possível que é incapaz de reconhecer a necessidade. Tudo sempre poderia ser de outro modo e, por isso, não há nenhuma razão suficiente para que a realidade — efetiva, atual — mereça mais atenção do que o imensurável campo do possível. Se a fenomenologia é, conforme diz Joseph Fell em um artigo, o autêntico projeto humano na medida em que é um retorno às coisas mesmas — isto é, um retorno dos céus inteligíveis, dos campos elíseos outromundanos, dos jardins edênicos com os quais sonhamos —, como conciliar esse autêntico retorno com um ambiente no qual os fenômenos, transformados em simulacros e simulações, apontam para si mesmos, sem a densidade que outrora impregnava os acontecimentos e ações — e as ações e acontecimentos que eram motivados por outras ações e acontecimentos, que deles se depreendiam como respostas e efeitos — e que, portanto, conforme Sartre e Baudrillard, não possuem nenhum sentido em si mesmos exceto aqueles que lhes conferimos quando, conforme Ricoeur, visamos uma vida boa?
Eu não tenho respostas para estes questionamentos. Quanto penso em coisas assim, lembro de outras muito mais bem-humoradas do que as grandes ideias filosóficas. Lembro do dito de Grouxo Marx, dizendo “estes são os meus princípios. Se não gostarem, tenho outros” — o que, no gradiente ricoeuriano, é um convite para que sejamos mais sem caráter ou, como o Ulrich de Musil, sem qualidades. Também lembro de Agostinho. Não o Santo, mas o Carrara, d’A grande família, interpretado por Pedro Cardoso. Não seria ele um herói ricoeuriano, assumindo a dificuldade de um amor?
Finalmente, eu lembro de Samuel Beckett. Como disse Eduardo Streblitch, aos 23 anos, em uma entrevista ao saudoso Jô Soares, Beckett é engraçado, mas nem todo mundo percebe. Em Beckett, a “teoria da ação”,, da qual Ricoeur se alimenta, vai abaixo. As ações viram gestos e não visam coisa nenhuma. Se esgotam em si mesmas, indicam e apontam para um fazer irredutível, sem remissões — e que, portanto, não possuem um semblante parecido com aquele que chamaríamos de humano. Tudo é feito para nada. Mais ou menos como a ginástica praticada por pessoas que, como eu, não estão fazendo ginástica para ficar mais fortes, mais bonitas ou mais saudáveis, mas apenas para fazer a ginástica. Aliás, ontem, dos 27 minutos que fiz de esteira, 25 foram correndo (no primeiro e no último eu caminhei). Nunca tinha corrido tanto, por motivo nenhum. Nem sabia que era capaz disso. Até consegui, com meus fones de ouvido, unir o útil (?) ao agradável (!). Enquanto corria, lembrei de uma pichação que vi em uma parte inferior de uma escada de uma universidade ocupada.
Ainda bem que ninguém me perguntou por que eu corri ontem. Se me perguntassem, eu teria de responder como Forrest Gump e Santo Agostinho: não sei.