As coisas podiam ter seguido outro caminho?
Associações livres sobre o futebol e a lavanderia
No dia 10 de novembro de 2018, um temporal em Buenos Aires adiou em um dia a final da Libertadores, entre Boca Juniors e River Plate. Esta foi a última edição do torneio em que houve jogo de ida e jogo de volta. O primeiro foi na Bombonera e o segundo, depois de cenas lamentáveis de violência, não foi no Monumental de Nuñes, mas no Santiago Bernabéu, em Madrid. O River chegou na final passando pelo Grêmio, em uma atuação amaldiçoada de Matheus Bressan, que entrou no 2º tempo, tomou amarelo e depois o vermelho, em um pênalti que mudaria o rumo da partida. Nesse mesmo dia, no El País, era publicada uma notícia que dizia, no subtítulo, que um neurocientista dos EUA diz que devemos deixar que as pessoas mais próximas tomem as decisões do nosso cotidiano para evitar o gasto de energia.
Para Leopold von Ranke, segundo Hans-Georg Gadamer, o nexo histórico é formado por “cenas da liberdade”. Não sei se Ranke está pensando em coisas muito diferentes das que passaram pela cabeça de Régis Marques, quando este escreveu o verso “pranchando adaga a gritos de liberdade”, do cancioneiro gaúcho. La historiografia rastrea las escenas de la libertad; esto es lo que la hace tan apasionante, diz a tradução da Weltgeschichte de Ranke para o espanhol, citada no meu exemplar de Verdad y metodo publicada na mesma Espanha em que jogaram os hermanos porque, arrisco dizer, Matheus Bressan tomou as próprias decisões.
Gosto muito da canção Primeiros erros, na voz de Kiko Zambianchi. Está em uma de minhas playlists. A ideia de “primeiros erros” aponta para o fascinante fato de que haverá, na vida, segundos, terceiros, quartos erros. A ideologia liberal sabedoria popular, apaixonada pela moderníssima ideia de melhoramento ilimitado, tenta nos fazer crer que não se erra jamais se olharmos para os erros como experiências. Nesse fake plastic world, perdemos o direito de errar. Se, contudo, compreendermos “experiência” em um sentido mais amplo, com o historiador Reinhart Koselleck, por exemplo, a palavra recupera alguma dignidade. Citando uma carta do Conde Reinhard para Goethe, datada de 1820, na qual este diz que “a experiência já feita se apresenta concentrada em um ponto, ao passo que a experiência a ser feita se estende por minutos, horas, dias, anos e séculos”, Koselleck decanta dessa frase a compreensão de que “uma expectativa jamais pode ser deduzida totalmente da experiência” porque a experiência “pode ser comparada ao olho mágico de uma máquina de lavar, atrás do qual de vez em quando aparece esta ou aquela peça colorida de toda a roupa que está contina na cuba”. Uma imagem maravilhosa, que me remete imediatamente ao verso de Sappy, do Nirvana: you’re in a laundry room.
“He'll keep you in a jar / And you'll think you're happy / He'll give you breathing holes / And you'll think you're happy / He'll cover you with grass / And you'll think you're happy”, diz também a letra que parece escrita por alguém que parece querer tomar decisões por outra pessoa, antes que ela passe a vida em um jarro com furinhos para, depois, restar sob a terra coberta de grama. Não seria esse Kurt-lírico um parente (nem tão) distante de quem quer nos tirar o direito de errar, de compreender o erro enquanto erro?
Faço uma rápida consulta e percebo que nos últimos cinco anos, Bressan já morou nos Estados Unidos e agora está na China. Jamais será esquecido pelo simples fato de que tomou, em um momento crucial, decisões erradas. Ele já não precisa de segundos erros, já que está para sempre definido pelos primeiros. Acho que o caso desse jogador, tão banal quanto catastrófico, é um lembrete de que há sempre um instante instaurador no qual um destino pode ser selado. Extremo, o erro irreversível e irredimível é imensuravelmente mais radical do que nossos errinhos. Todavia, o erro foi dele, de autoria dele. Não seria imensamente maior o arrependimento se a decisão fosse, como sugeriu o neurocientista, delegada a uma pessoa próxima? “O neurocientista estava falando de pequenas decisões cotidianas”, alguém poderia objetar, ao que eu acho que o caso desse jogador é emblemático: é em uma circunstância normal e banal que se toma uma decisão que parece normal e banal e eventualmente terá consequências decisivas, perpétuas. Se o futebol parece um cenário artificial demais para pensar sobre isso, basta que se lembre o caso do goleiro Barbosa, da seleção de 1950, que em razão de uma decisão, se condenou a ser hostilizado e odiado pelos 50 anos que lhe restaram. Eu, que já não peço, não dou e não aceito conselhos (olhe em volta e repare nas pessoas que lhe dão conselhos: o quanto esses conselhos não são mal disfarçadas confissões de gente que, insatisfeita, quer tirar você do seu jeitinho de se relacionar com seus mais próprios possíveis?), tenho a forte impressão de que não tenho mais 50 anos de vida, como teve o goleiro Barbosa depois do Maracanazzo. Mesmo assim, prefiro o direito ao erro do que a delegação das próprias decisões aos próximos. Evidentemente, conheço o tentador desejo de dar conselhos e até de tomar as decisões pelas outras pessoas. No entanto, nessas circunstâncias, me reservo o direito de crer naquele tipo de comunicação quase mágica, em que qualquer pessoa que realmente precisasse ou quisesse uma palavra minha é alguém que já não precisaria que eu a dissesse, pois já sabe exatamente o que eu diria. Até porque, falando demais, eu já disse muitas coisas nessa vida. No caso de alguém que quisesse uma opinião minha, imagino que ela poderia aparecer como uma peça de roupa no olho mágico de uma máquina de lavar. Uma camiseta do Nirvana, talvez. Já tive uma, mas se extraviou em uma época em que eu, distraidamente, me deixei decidir que outros decidissem algumas coisas em meu lugar.
Enfim, essas reflexões um pouco desconexas podem apenas ser fruto do que algumas pessoas chamariam de inferno astral. Ter de fazer processos seletivos nesse período pode, digamos, intensificar o sentimento de enredo até o nível da vertigem. Fica a sensação de que tem alguma coisa acontecendo. Mas provavelmente é apenas uma sensação.