Amar a filosofia, amar um amor
Sobre o lançamento d'"O animal digiana", do professor Ronai Rocha
Faz algum tempo que eu me sirvo — me servia mais, para ser honesto — de fórmulas baseadas em dobrar um verbo no infinitivo. Elas me parecem designar, ao mesmo tempo, duas atitudes diferentes. “Querer querer”, por exemplo, pode significar, de modo bem grosso, “ter vontade de ter um desejo que não se tem” ou, alternativamente, “desejar o desejo que já se sente”. Em seu livro mais recente, Necessidade existencial, o professor Róbson Reis lança mão de uma estrutura similar mas que não permite essa ambiguidade. Se bem me lembro (o livro está aqui comigo, mas ele é de papel e não posso fazer uma “busca por termos”), ele não chega a usar a expressão “escolher escolher”, mas fala de “escolher a escolha”, de “escolha escolhida”, e indica, por meio dessa expressão, uma escolha assumida, isto é, reconhecida e sustentada como escolha. Pensando muito rapidamente na expressão "escolher escolher", acho mesmo que ela não admite essa dobra que produz ambiguidade.
"Amar amar", porém, parece admitir a dobra semântica na direção de uma ambiguidade, ainda que suave. É possível “amar a experiência de estar amando”, em um sentido, digamos assim, próximo daquilo que a psicanálise chama de histeria: seja lá qual for o objeto, há um amor pela experiência de estar amando em geral, um amor que clama por expressões histriônicas e quase sempre teatralizadas, por performances que realizam perfeitas simulações, em sentido baudrillardiano — isto é, “verdadeiras” demais para que fossem mero fingimento, “falsas” demais para que fossem sinceras. O outro sentido, porém — e isso mostra que o verbo "amar" parece tem um campo semântico ou de uso (há diferença?) aparentemente mais estreito que o verbo “querer” —, seria o de “amar um amor em específico”, um amor que de certo modo já se sente por algo, um amor tão bom e bonito que ele próprio é digno de um, digamos, amor de segunda ordem. O objeto desse amor privilegiado emite uma tal radiação que amamos o objeto e amamos amar o objeto — em um sentido muito próximo, portanto, do sentido de “escolha da escolha” usado pelo professor Róbson Reis.
É piegas, kitsch e cafonérrimo lembrar que filosofia tem amor no nome. Mas tem. Lembro, por exemplo, de um livro que logo vai fazer um quarto de século e que tenta demonstrar, desde sua primeira página, que Hegel não era um filósofo, já que não era um amante (ou amador) da filosofia, pois se considerava seu dono. Como bem me lembrou o professor
, muito antes que eu tivesse lido O homem sem qualidades, Robert Musil já nos advertia para o fato de que “filósofos são déspotas que não dispõem de nenhum exército, por isso submetem o mundo todo encerrando-o num sistema”. Na minha relação com a filosofia, que já dura um quinto de século, reconheço o caso excepcional de Hegel. A tal da paciência do conceito, em Hegel, bem que poderia ser um caso do que hoje se convencionou chamar de soft power: é pelas beiradas, no tempo lento do Espírito, com “E” maiúsculo, que a metafísica — enquanto, digamos assim, estrato semântico da cultura, e não como campo ou disciplina do saber profissionalmente filosófico, às vezes desconectado da cultura — vai se impondo como um certo tipo de poder suave. Digo isso com a autoridade do fumante que escuta as conversas nas áreas externas das instituições de ensino e dos bares e, com curiosidade, presta atenção nas palavras que aparentemente não têm referência, isto é, que apontam para coisas que de certo modo não existem, como é tão frequente ou mesmo típico da filosofia.Tenho usado mais e mais a palavra “palavra” em detrimento da palavra “conceito”. É uma opção que pode, talvez, ficar mais nítida se pensarmos na palavra “amor”. Se por um lado a palavra “amor” não ama, é preciso reconhecer que a palavra “amor” se deixa vincular com um número de conceitos de “amor” tão grande quanto é o conjunto dos “amantes” nesse mundo. Esse era meu exemplo preferido na hora de explicar o conceito de vagueza conceitual quando eu lecionava em cursinhos pré-vestibulares: se o conceito de “triângulo” é rigorosamente exato — três ângulos, três lados, três vértices — e isso é bom, o conceito de “amor” é, me permito, rigorosamente vago: as “notas conceituais” de “amor” podem ser três, dezessete, setenta e duas ou talvez até uma só, e frequentemente os amantes — e os amados — nem sabem quais são essas notas que regulam e coordenam o reconhecimento dos casos instanciados de “amor” em sua vida. Nessa época eu dizia algo que hoje diria ainda mais, a saber, que é bom que essas notas não sejam conhecidas: que tipo de pesadelo seria se diante de um “eu te amo”, perguntássemos “como assim?” e recebêssemos uma lista com as cem razões de um amor? Não, de jeito nenhum. O amor, como bem sabia Drummond, só admite o “cem” com “s”: no amor, cujo ideal é a incondicionalidade, nenhuma razão pode até ser melhor do que alguma.
A filosofia é um amor. Já disse isso por aqui, mais de uma vez, e me repito de novo: eu contraí amor pela filosofia já no meu primeiro semestre de faculdade, primeiro semestre que está completando vinte anos. O causo é que amar a filosofia é amar um amor. É amar um certo jeito de encarar as relações entre palavras, pensamentos e coisas. E se o conceito de “amor” é tão plural quanto são plurais os amantes, os amados e os amadores, acho que é legítimo dizer que é bom que o amor que é a filosofia possa, ele próprio, ser amado de várias formas. Como dizia Contardo Calligaris, aliás, “o amor é uma coisa que se aprende”. Menciono isso porque em parte devo esse aprendizado do amor pela filosofia aos mestres que tive, que amam a filosofia de modo diferente e ao mesmo tempo parecido com o meu jeito de amá-la. Um desses mestres — o já mencionado professor Ronai —, há uns poucos dias, lançou um livro que é um compilado de suas postagens no seu substack e que, (re)lendo (como se fosse a primeira leitura), me causam aquela boa impressão acerca dos privilégios de quem, nessa vida, é dominado por entusiasmos, manias, obsessões e paixões que constituem essa às vezes (frequentemente) ingrata vida de dedicação às palavras. O link para o livro do professor Ronai está aqui, pelo precinho de uma cerveja em um boteco.
Tomo a liberdade de postar essa foto casual que (eu acho que disse que) ficaria em arquivo pessoal porque sim. E porque estou devendo ao prof. Ronai, já desde o lançamento do Filosofia da educação (e ao prof. Róbson, desde o recente lançamento de Necessidade existencial) aquilo que é da ordem da merecida resenha daquilo que poderia e deveria circular mais e melhor. Para o momento, fica o agradecimento — feito com a autoridade de quem sabe amar e aprendeu a amar amores — e a renovação da promessa da(s) merecida(s) resenha(s).
Legal o texto. Assinei a newsletter do professora também. Me interessei pelos livros. Eu também escrevo por aqui. Obrigado! :)