"All solar love is innocence and creative longing"
Amores solares só cintilam em noites claras?
A frase que vai no título é do Zaratustra de Nietzsche. Ela aparece mencionada na nota nº 54 do capítulo 4 da Parte I - Introdução do Heidegger and Sartre de Joseph Fell (que, caso alguém ainda não saiba, estou tentando traduzir), intitulada Nothing and the world. Procurando pelo original dela, encontramos o seguinte: Unschuld und Schöpfer-Begier ist alle Sonnen-Liebe!. Assim, com exclamação. O interessante de averiguar a frase em alemão é sobretudo o fato de que eu não sei falar alemão, o que resulta em um exercício sempre muito interessante de não chegar a lugar nenhum. Anyway, sei que Sonnen é sol porque Sonntag é domingo e ontem foi Sonntag e eu sobrevivi ao endomingamento ontológico mais uma vez. Sei que schuld é qualquer coisa como “culpa”, “dívida” ou “débito”, e o unschuld é portanto a innocence da frase em inglês. Agora... Schöpfer-Begier é creative longing, certo? Se a gente joga esses termos em um translator on-line, acha "criador" e "desejo" como suas traduções, o que, vá lá, parece bom. Isso inclusive me lembrou o começo de As dimensões do gozo, de Patrick Valas, no qual se encontra o seguinte esclarecimento:
"Freud utiliza dois termos para designar o desejo: Wunsch, que significa voto ou desejo, e Lust, que se traduz como apetite e prazer. Em alemão, os termos Wunsch e Lust não comportam a noção de reconhecimento, ao contrário da palavra Begierde, que Freud não usa e que, na tradição filosófica, qualifica o desejo com o reconhecimento que lhe é atinente."
Begier(de), portanto, é um desejo que sabe que é desejo, um anseio que se reconhece como tal. Agora vejamos essa frase de Que é metafísica? no inglês de Fell:
"The anxiety of the courageous [...] stands [...] in secret union with the serenity and gentleness of creative longing."
É daí que sai a nota 54 que menciona o Schöpfer-Begier do Zaratustra. Antes, contudo, de comentar a razão pela qual isso é esquisito, vejamos como isso ficou na tradução de Ernildo Stein, dos anos 70:
“A angústia do audaz [...] situa-se [...] na secreta aliança da serenidade e doçura do anelo criador.”
Bem mais recentemente, o professor Sandro Sena, trocou o "anelo" de Stein por "nostalgia". Portanto, "creative longing" pode ser "anelo criador" ou "nostalgia criadora" exatamente como "Schöpfer-Begier", certo? Porém, o ponto é que o texto de Heidegger, no original, não diz "Schöpfer-Begier", mas “schaffenden Sehnsucht”. Antes de dizer qualquer outra coisa sobre isso, vou printar aqui uma passagem da qual nunca me esqueço porque certa feita mostrei para um amigo e ele disse que eu tinha inventado a palavra Sehnsucht, de tanto que aquilo que ela designa parecia presumido em tudo o que eu fazia, pensava, gostava, queria, amava. Eis o print:
De maneira aparentemente muito mais intensa do que o Begierde do qual Freud aparentemente não fala, Sehnsucht é uma palavra pesadona, que significa um desejo que se reconhece e se deseja enquanto desejo. Há quase seis décadas, Gerd Bornheim, assim como Sandro Sena, também aproxima a Sehnsucht da nostalgia, quando declara que "a 'flor azul' do romantismo, a Sehnsucht, a aspiração de uma unidade perfeita somente pode ser compreendida através da convicção de que a dor da separação atravessa o homem. Mais adiante, nesse mesmo texto (uma joia talvez esquecida e que pode ser encontrada por um preço simbólico nos sebos), ele diz o seguinte:
"Todo o drama romântico se desdobra […] condenado a uma nostalgia que se sabe sem possibilidade de consecução. […] Nesta dissonância profunda entre a máscara que não pode ser abandonada e a exigente nostalgia de uma impossível integração […] debate-se a alma romântica. Todos os caminhos serão percorridos para atingir esta integração: a volta à infância ou ao passado, o refúgio no mundo dos sonhos, do amor, o entorpecimento do luxo e dos narcóticos, a inconsciência do sono e da morte, enfim, todas as modalidades de paraísos artificiais."
Sehnsucht é, portanto, qualquer coisa da ordem daquilo que, um século e meio depois, Sartre vai chamar de “paixão inútil”, cuja melhor administração é vivê-la na consciência de sua irrealização. Mais ou menos, quem sabe, como se Ulisses, enfeitiçado pelo canto das sereias, não pudesse se jogar nos braços delas nem se quisesse. As sereias são para ser vistas em sua nudez e ouvidas em seu hipnótico canto. Você não pode ter uma sereia, em suma, e reconhecer que o desejo pela sereia é sobretudo e antes de tudo desejo do desejo pela sereia é o consolo triste que nos salva de morrer de maluquice.
Mas estou tastaviando. Voltemos.
Meu ponto é: ainda que creative longing — isto é nostalgia criadora — aponte tanto para schaffenden Sehnsucht (Heidegger) quanto para Schöpfer-Begier (Nietzsche), qual é exatamente a vantagem de fazer essa observação em uma nota de rodapé? Há algum parentesco entre a angústia do audaz e a inocência do amor solar? Que amor solar pode haver na "clara noite do nada da angústia" [der hellen Nacht des Nichts der Angst]? Nas mais de 700 páginas do Nietzsche portable (!) organizado por Walter Kaufmann, a expressão "solar love" só ocorre uma vez. Jogando a expressão em mecanismos de busca acompanhada do nome de Nietzsche, por outro lado, aparece muita coisa, coisa demais para investigar agora. Confesso — tardiamente, pois do contrário o texto não teria razão de ser (lido) — que a pista para o recurso de Fell a esse outro jeito de dizer nostalgia criadora já aparece na nota n° 53, quando ele declara estar usando o vocabulário de Paul Tilich, em A coragem de ser. As poucas menções de Fell ao nome desse teólogo, porém, não me deixam outra alternativa a não ser ler o livro deste, o que não vou fazer imediatamente porque também entra na conta do coisa demais para o momento. Aceito qualquer sugestão, comentário ou observação sobre essas muitas coisas que falei sem dizer muito. Por enquanto, como imagem que me mantém cativo ao caminho dessas digressões investigativas, me permito supor que o amor solar é qualquer coisa da ordem do que só pode cintilar em noites claras.