Além do futuro, depois do fim
Envelhecimento, experiências geracionais e expectativas terminais
Hoje reli Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos, um conto de Milan Kundera que compõe Risíveis amores. Esse conto é, talvez, um dos momentos mais leves de toda a obra do autor. Trata-se da história de um reencontro de um casal, 15 anos depois de terem vivido um breve episódio de encontro romântico. 15 anos também é a diferença de idade entre o casal: ela, entrando na casa dos cinquenta, se sente insegura em se mostrar diferente do que era aos trinta e poucos anos, e hesita em aceitar o reencontro íntimo. Ele, não menos inseguro, também parece pensar que seu tempo passou, acabou, que a época das aventuras ficou para trás porque, afinal, lhe apareceram sinais de calvície (um overreacting de ambas as partes, sem dúvida, ma non troppo, já que é preciso estar do lado de fora da circunstância para poder ajuizar assim sobre ela). Esse tema reaparece em outros romances: em A imortalidade, que reli na semana da última Páscoa, Agnes deixa de encontrar Rubens, seu amante, depois que vê um traço físico desagradável no próprio corpo, no espelho de um hotel, enquanto está com ele. O próprio Rubens, protagonista da sexta parte, intitulada O mostrador (o mostrador do relógio da existência), será o protagonista de uma história que culmina, também, com o envelhecimento e o encerramento da época das aventuras eróticas. Diferentemente do que acontece em A imortalidade, em Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos (spoiler alert para o conteúdo de uma história publicada há mais de meio século), encontramos um casal que, a despeito das marcas de envelhecimento corporal, decide se permitir a, digamos assim, celebração erótica desse reencontro, a despeito da compreensão, que ocorre a ambos, de que o tempo perdido é irrecuperável e irreversível.
Anos atrás me servi da expressão "a crise substituiu o fim", que Ricoeur encontra em Kermode, para designar aquilo que François Hartog chama de presentismo. Diferentemente de Fukuyama — e depois dele —, Hartog propõe que o que mudou há uns quarenta anos foi o regime de historicidade. A História-Geschichte, Grande Marcha progressista para a frente e que começou ali por 1750-1780, pode ter acabado. Mas a historicidade existencial-transcendental constitutiva da condição humana não se foi como nuvem passageira que com o vento se vai. Vivemos, sim, admite Hartog, um tempo sem futuro propriamente histórico, um futuro cujo horizonte de expectativas, quando não parece vazio, aparece repleto de imagens desagradáveis e indesejáveis. Não precisa ser o “fim” da história se a “crise” for o nosso novo normal, portanto. Mais ou menos como esses personagens de Kundera em relação ao período das aventuras eróticas, estaríamos além das experiências propriamente históricas que, no presentismo, não podem florescer em nosso encolhidíssimo espaço de experiências.
Lembrei desse conto de Kundera ontem, após ouvir uma bela fala sobre O novo tempo do mundo, livro de Paulo Arantes, lançado há pouco mais de dez anos. Partindo de um conjunto de referências bem parecido com o de Hartog (ambos são leitores de Koselleck, por exemplo), contudo, Arantes é bem mais agudo que Hartog. Mais materialista, também. Arantes, para alguns, é catastrofista: chamar nosso presente de “crise” é elogiá-lo, dado que a crise, como observa Koselleck, indaga justamente aquilo que já não temos, a saber, o futuro histórico. Não vou me demorar aqui na apresentação do pensamento de Arantes. Opto por sugerir suas palestras e lives, no YouTube, aproveitando para confessar que essas palestras e lives me ajudaram a administrar minha saúde mental nas eleições presidenciais de 2022. Não, os vídeos de Arantes não trazem quase nada que se assemelhe ao consolo, ao encorajamento. Pelo contrário: há quase três anos, ouvir Paulo Arantes me ajudava a compreender que em certo nível meta-narrativo da política, o resultado das eleições seria quase completamente indiferente. Com inesperadas propriedades imunológicas, o discurso de Arantes me vacinava contra a desolação espiritual (no caso de um resultado indesejado) e me protegia de uma entusiasmada adesão (no caso de um resultado desejado). É bem provável que ano que vem eu volte para essa terapia imunológica que Arantes me proporciona.
Na minha última postagem, falei de Alasdair MacIntyre, que recentemente nos deixou. Para ele, a crise não substituiu o fim. O sentimento de crise seria só uma maquiagem cafona sobre o rosto de um cadáver fresco, de um fim que já aconteceu e que, em uma espécie de reação maníaca, não queremos reconhecer. Por mais que seja clichê, MacIntyre já achava, há meio século, que vivemos o declínio de nosso próprio Império Romano. Assim como Arantes, MacIntyre também se lembra de Godot, mas opta por São Bento e parece torcer para que a História termine logo de terminar para que, quem sabe depois dela, a vida com sentido volte a ser possível, em pequenas comunidades mezzo monásticas. Diferentemente de Arantes e de MacIntyre sobre a nossa sociedade, a protagonista de Que os velhos mortos… não está, quando topamos com ela, pensando nesse tempo-depois-do-fim do erotismo, até o momento que encontra seu antigo amante. É só então que a, digamos assim, estrutura dessa época depois-do-fim se impõe explicitamente para sua consciência. A protagonista constata que “já perdera havia muito” o “estado de preparação permanente” para a interação erótica, estado mais ou menos comum da vida adulta, que as crianças ainda não conhecem e do qual os velhos podem, sem perceber, se esquecer. Ela vence a insegurança quando percebe que ele é provavelmente “o último homem que lhe agradaria e que ela poderia ter”. Esse encontro, portanto, é um episódio depois-do-fim, um epílogo experimentado enquanto tal. Nem Agnes, nem Rubens parecem ter vivido esse epílogo como conscientemente o vive a protagonista de Que os velhos mortos….
Porém, uma coisa é o fim do período das aventuras eróticas nas existências individuais, bem outra é o fim da História, não é? Como seria possível permanecer existindo — isto é, se projetando em possibilidades, imerso em cenários imbuídos de sentido — em um tempo sem futuro histórico? A eventual dissolução de um regime de historicidade significaria, por assim dizer, a destruição da própria capacidade de esperar — mais ou menos como o último verso de Funeral blues, de W. H. Auden?
Talvez sim, talvez não. Hartog tem 79 anos. Arantes, 83. MacIntyre nos deixou aos 96. Todos os três viveram boa parte de suas vidas — suas juventudes — numa época rica de expectativas, talvez até rica demais: Hartog, em uma expressão que considero cintilante, incandescente, fala até de uma tirania do futuro. É uma experiência bem conhecida pelas pessoas ansiosas: de modo tardio, frequentemente percebem que sua preocupação com o futuro é qualquer coisa como um traço demoníaco que lhes rouba certos perfume e sabores do presente e do qual simplesmente não conseguem se livrar. Ernildo Stein, que tem 90 anos, há uns trinta e poucos — já quase com 60, portanto — arriscou uma pequena tipificação das respostas, digamos assim, emocionais ao desmoronamento do futuro histórico: é possível elaborar o luto pelo que se perdeu — e essa seria, digamos assim, a opção mais fitness para a alma, por meio da qual se recuperaria certa qualidade de vida — mas também é possível cair em melancolia (como em Funeral blues) ou em mania, isto é, em uma atitude de dobrar a aposta e, de maneira teimosa, permanecer esperando da realidade o futuro que se tornou, agora de forma patente, impossível. “Seamos realistas y hagamos lo imposible”, dizia uma camiseta que eu usava em minha juventude.
Tenho a metade da idade dos autores que citei acima. Minha geração, que não viveu a crista da onda da Grande Marcha da História, experimentou o que hoje, de longe, me parece ter sido uma marolinha de expectativas — embora, é verdade, eventualmente, nos dias felizes, tenhamos sentido que surfávamos em um tsunami de promessas na direção de um futuro promissor. Esse mês vai fazer 12 anos que, para muitos dessa minha geração, a crise substituiu o futuro. Reitero: crise pode ser um eufemismo para catástrofe e pode ser uma máscara do fim. Mas “quando um fenômeno anuncia, de longe, seu próximo desaparecimento, nós somos muitos a sabê-lo e, eventualmente, a lamentá-lo”, mas “quando a agonia chega a seu fim, nós olhamos adiante”, pois “o fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não exista nada tão pacífico quanto o fim”, diz Kundera. Cheguei a sugerir por aí que a filosofia de Ricoeur pode ser um observatório do quanto o fim é pacífico: em 1985, sua hermenêutica da consciência histórica nos pede expectativas determinadas e abertura para a indeterminação da experiência. O que o assusta é a tirania do futuro, da utopia, dos sonhos de noites de verão, nos quais parece imperativo exigir o impossível e, se necessário, dobrar a aposta. 15 anos depois (sim, novamente, esse intervalo exato e quase mágico de tempo cronológico) ele já fala de uma hermenêutica ontológica da condição histórica. Para onde foi a consciência histórica? Para onde ela se retraiu, deixando nua a estrutura ontológica de nossa simples condição? No ano 2000, Ricoeur vai tomar a fenomenologia heideggeriana do ser-para-a-morte em conjunto com a epistemologia da historiografia para pensar modos de honrar os mortos, de honrar a passeité do passado, honrar aquilo que foi e assegurar que nada possa fazer com que o que foi não tenha sido. No lugar da tirania dos futuros utópicos, uma nova ameaça assombra o campo deserto da experiência histórica: a mera memória que, sem história, é feita na base de excessos dela própria e dos excessos de esquecimento dos quais essa memória excessiva, historicamente congelada, depende. Contra a bulimia comemorativa e contra as tentações identitárias, meditações sobre perdão, sobre amor ágape, sobre a economia do dom no lugar da economia da troca, em suma, sobre tudo o que o direito e a política não podem assegurar — se é que não terminam interditando, me pergunto. Nessa nova modulação de sua hermenêutica, já não parece imperativo renunciar a Hegel na sábia incerteza sobre se isso é catástrofe ou libertação (Hegel já foi renunciado, na teoria e na prática, para o bem ou para o mal). Parece bastar, para o filósofo que em 2000 tinha 87 anos, assegurar as condições para a memória feliz — isto é, a memória que comparece e assegura a veracidade testemunhal daquilo que foi.
O sorridente filósofo me parece ter encontrado, sem estardalhaço, uma atitude e uma sensibilidade para uma existência que se passa depois do fim, depois da possibilidade de certas aventuras. É verdade que ele vive e morre na esperança pelo zelo cívico com as instituições justas, hipótese que provavelmente parece implausível e ingênua em olhares como os de MacIntyre e Arantes. Pensando com este, aliás, Ricoeur não parece ter quase nada a dizer sobre as massas de inimpregáveis que o capitalismo gostaria de poder enfiar em grandes barcos e deles se livrar os lançando ao mar. Provavelmente o próprio Ricoeur detestaria meu enquadramento, no qual ele se transforma em um pensador das coisas que restam depois-do-fim: preocupado com a dimensão cívica de nosso existir, em meu enquadramento, ele termina ficando meio parecido com o Heidegger tardio, do habitar poético que, como poucas perspectivas em filosofia, parece orientado para o depois de um fim que, apesar de consumado, parece teimar em agonizar na forma de um desnecessário epílogo.
Pepe Mujica, que nos deixou recentemente aos seus 89 anos, falou que cada geração aprende com suas próprias experiências. Tomara que ele esteja certo. Eu ainda não sei como é exatamente isso de existir além das expectativas, depois do fim. Se eu descobrir, prometo que eu conto. Vai que a gente precisa aprender? Acho que antes de simplesmente se acostumar, é melhor compreender.