"A passagem do estranhamento para a familiaridade é o começo da despedida"
Talvez toda nossa nostalgia metafísica esteja assentada sobre um grande preconceito: a realidade
Acho que a frase que vai no título do texto de hoje é uma das coisas mais bonitas que me ocorreu na vida. Considerando que meu gosto pela filosofia passa mais ou menos por aquele sentimento estético do qual falou Thomas Mann diante da filosofia de Schopenhauer, tenho que dizer que para mim ela tem um sentido filosófico bem definido: enquanto não nos familiarizamos com algo, com alguém, com alguma situação, a coisa é experimentada nas brumas de uma mistura de fantasia, surpresa e incompreensão que, em um sentido muito especial do termo, vou chamar de estranhamento. A coisa, pessoa ou situação ainda é meio estranha no mesmo sentido em que, quando crianças, não só não devíamos falar com estranhos ao mesmo tempo em que éramos obrigados a (nos) familiarizar (com) um mundo total e inteiramente estranho. Familiarizada e compreendida, a coisa, pessoa ou situação surpreende menos, já não se deixa vestir ou adornar com adereços advindos das nossas fantasias e entra em um esquema de padrões e repetições, fazendo parte do habitual. É daí que a coisa, pessoa ou situação outrora estranha começa, familiarizada, a se despedir: sob o fundamento da finitude da existência - da finitude em seu sentido metafísico, isto é, como sinônimo de efemeridade, de sujeição ao poder dissipador do tempo, diante do qual tudo é nuvem passageira, dust in the wind, festa da insignificância -, cada ocorrência repetida daquilo que uma vez familiarizado já é esperado e previsto é uma ocorrência a menos, uma ocorrência que não se repetirá, que começa a se despedir ao começar a ocorrer, como se aquilo que é e aquilo que ainda será fossem apenas semblantes efêmeros de algo que logo já terá sido, irrecuperavelmente sido.
Provavelmente essa ideia me surgiu uns anos atrás, quando eu mergulhei na obra de Reinhart Koselleck, especialmente naquilo que foi publicado em português. Acho que dá pra depreender essa fórmula da dinâmica interna de suas categorias de horizonte de expectativa e espaço de experiência. Koselleck sempre insiste que, conforme ensinado por Wilhelm Busch, as coisas nunca ocorrem do modo que as imaginávamos. Portanto, antes que ocorra um encontro com algo, alguém ou com uma circunstância, impera a expectativa, sobretudo na forma da fantasia. No encontro, logo a realidade da coisa, pessoa ou circunstância vai substituindo a fantasia pelo estranhamento, com suas boas e más surpresas, com suas incompreensões, instaurando um regime de exploração. Um dia qualquer, sem nenhum alarde, sem nenhum decreto, já há experiência o suficiente para que a expectativa já não estranhe muito o que se dá e o que não se dá, diminuindo a distância entre os picos do entusiasmo e os vales da frustração. Pobre de experiência, a expectativa fantasia e estranha. Rica de experiência, a expectativa prevê em íntima familiaridade com o habitual. Suficientemente rica e razoavelmente satisfeita, a experiência pode eventualmente perceber que cada ocorrência a mais é uma ocorrência a menos, que aquilo que se lhe apresenta e se lhe oferece é qualquer coisa como um desfile das coisas que se dão e que se vão. Tenho a sensação de que a expectativa, em relação com esse tipo de experiência, se transforma naquela nostalgia da qual fala Rosa Montero na primeira frase de A carne, quando diz que "a vida é um pequeno espaço de luz entre duas nostalgias: a nostalgia do que ainda não vivemos e a do que já não poderemos viver”. A expectativa é a nostalgia do que ainda não vivemos. A nostalgia do que já não poderemos viver já teria a ver com o que eu chamaria, com Robert Musil, de senso de possibilidade.
Vai fazer uns cem anos que a filosofia ofereceu elementos - uma herança de certo modo depreciada, penso eu - para que nossa experiência do tempo não fosse tão estreita quanto é. Estou pensando aqui na bela e quase mágica expressão de Martin Heidegger, quando este fala da força silenciosa do possível: por toda parte, futuros silenciosos e perdidos nas brumas que na maioria das vezes recobrem nossos horizontes de expectativa exercem sobre nós sua força gravitacional. Fazemos nossos caminhos na neblina, no nevoeiro, na cerração, como se diz no pampa gaúcho. Vamos deixando uma e apenas uma trilha para trás, uma trilha por meio da qual, no e apenas no privilégio da retrospecção, podemos ponderar e fazer balanços sobre o que foi e sobre o que não foi, sobre os possíveis que outrora exerciam sobre nós sua força silenciosa e que, com o tempo, constatamos que foram morar em um lugar muito especial, a saber, naquilo que Koselleck chamava de futuros passados. Se a regra é a neblina e o nevoeiro, porém, o Ulrich de Musil, protagonista de O homem sem qualidades, se mostra ao longo das centenas de páginas do romance como alguém que teve o azar de ter a sorte de perceber que se existe senso de realidade, tem de haver senso de possibilidade. Ulrich tinha uma compreensão mais ou menos explícita e mais ou menos constante de que aquilo que a filosofia chama de real e efetivo, isto é, a possibilidade atualizada no presente da experiência, é uma possibilidade entre tantas outras possibilidades que, em todas as direções do horizonte de nossas experiências, se apresenta. Por um certo descompasso com o modo normal de ver e viver a vida, Ulrich não conseguia olhar para a realidade com o ordinário e bem distribuído preconceito de que aquilo que é teria algum, digamos, privilégio ontológico sobre aquilo que poderia ser mas não é. A força do possível, para Ulrich, não era assim tão silenciosa mas, pelo contrário, fazia com que o possível se impusesse com a mesma força de evidência que o real, em uma experiência caracterizada por, nas palavras de Musil, “nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. Ulrich experimentava tudo junto ao mesmo tempo: o que podia ser e foi, o que podia ser e não foi, o que podia ser e é, o que pode ser e talvez seja, mas que também talvez não seja. A percepção da relação interna entre os possíveis e a realidade - isto é, a percepção de que a experiência do real exige a experiência do possível que na maior parte das vezes se esconde e da qual quase sempre estamos esquecidos - fazia com que, para Ulrich, penso eu, aquilo que Koselleck chamou de espaço de experiências fosse imensamente mais amplo do que o nosso. Também penso que, nesse sentido, Ulrich ilustra bem essa possibilidade perdida do ver e do viver a vida longe do primado do senso de realidade que, por bem, por mal ou por pior, vigora como o default setup do enquadramento existencial da nossa experiência ordinária. Tenho mesmo a impressão de que alguém como Ulrich, um homem sem qualidades, está menos sujeito aos assaltos da nostalgia metafísica que transforma toda familiaridade em despedida. Para que minha fórmula, minha querida fórmula, tenha a força de lei sobre a experiência, é preciso que a vida seja vista como uma espécie de marcha para seu próprio fim, que tenha começado a terminar ao começar, em uma linearidade fatalista e agônica na qual o tempo só pode ser expediente de dissolução daquilo que vem das esferas das quais se depreendem aquilo que ainda não é e, depois de passar por nós muito rapidamente, cai no abismo daquilo que já não é mais, daquilo que se vai e corre o risco de desaparecer na insignificância, no esquecimento, como se jamais tivesse sido. Quando, porém, a realidade efetiva é compreendida como um e apenas um caso do possível, de um horizonte de possibilidades muito maior e mais amplo do que o da mera efetividade, essa linearidade mórbida perde seus direitos sobre nossa experiência do tempo. Em um espaço de experiência marcado por “nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”, a vida não parece um cortejo de despedidas definitivas. Evidentemente, um olhar distinto sobre a realidade não torna os eventos irrecuperáveis nem desfaz a irreversibilidade do tempo. Todavia, em uma perspectiva na qual o senso da força silenciosa do possível seja recuperada, tudo se passa como se as despedidas dançassem uma valsa, em círculos, em um grande salão de baile.