A paixão segundo V. H.
Às vezes a gente dá o jeito que dá pra dar no que ia se dando de qualquer jeito
Em 17 de novembro de 2017, postei em uma rede social o seguinte trecho:
“Do ponto de vista psíquico é um processo muito discutível, como os cientistas, historiadores, psicólogos, etc, se satisfazem teoricamente. Penso que se desenvolvem mesmo processos psicóticos em certos tipos de pesquisadores. O próprio modo como se conduzem na busca da investigação é um modo que os põe em risco do ponto de vista psíquico. Não tenho nenhuma dúvida que certas obras produzidas são casos de patologia, que talvez pudéssemos situar na psicopatologia de casos que nunca foram narrados por ninguém.”
As palavras são do professor Ernildo Stein. Já não lembro em que obra ele disse isso. Faz muitos anos que estou centenas de quilômetros distante dos meus exemplares de alguns de seus livros. Em 2017, associei essas palavras ao “transtorno obsessivo-compulsivo delusório”, que os psiquiatras não podem perceber porque essa seria, mais ou menos, a forma (pato)lógica do "eu" ocidental em geral. Há sete anos e quatro dias eu fiz essa aproximação mas não teci sobre ela nenhuma consideração. Dada essa ausência de prévias conclusões (“Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer.”, disse o poeta), tomo a liberdade de repensar essa aproximação.
Primeiro, a coisa do transtorno. A expressão “transtorno obsessivo-compulsivo delusório” é de Alan Wallace. Já se passou muito tempo desde a época em que eu tinha paciência para esse discurso no qual um sujeito de branco termina dizendo que um pouquinho de meditação nos ajuda a viver melhor nossa vida urbana, demasiado urbana. Até porque, conforme o poeta, “Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto / Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo” (e porque até Fumaça, café e cigarro do Jah estressado, de Marcelo Adnet, parece uma resposta bem mais lúcida para nossa situação do que o zen obsessivo dos gurus). Para atalhar a conversa toda, o problema seria que nossos cérebros seriam dominados por coisas e problemas que não existem. Guardadas as devidas proporções, essa perspectiva não amplia um milímetro a topologia do campo do que no freudismo se convencionou chamar de “realidade psíquica” e que, no lacanismo (brasileiro), passou a ser chamado de “fantasia” por uns e “fantasma” por outros. Experiência é experiência necessariamente meio delusória, como não cansa de ensinar a psicanálise e, também, o cinema gnóstico há algumas décadas. Todavia, da Matrix, para roubar uma expressão do prof.
, “não há saídas: há ruas, praças, avenidas” pelas quais, com muita sorte e um pouquinho de juízo, poderemos, depois de uma boa terapia ou de uma boa análise, “saracotear daqui para acolá” com um pouco mais de compreensão desse caráter incontornavelmente delusório da própria experiência. O lacanês nos ajuda a compreender que sem esse layer do Imaginário, o contato com o Real seria insuportável, conforme atestado por uma vasta literatura que o meu orientador de doutorado me ajudou a reconhecer em uma ampla gama de textos que vai da noite escura da alma de São João da Cruz até a náusea de Sartre. Portanto, se riscamos o “delusório” e o “transtorno” da expressão de Wallace, sobre uma obsessão-compulsão que, nesse mundo vasto mundo em que vivemos, pode não ser uma solução, mas pode muito bem ser uma rima. Voltarei a isso no fim desse texto.Indo do que Wallace chama de delusório para o que Stein chama de psicótico, vamos — se borramos um pouco os distintos dialetos psi dos quais emergem os termos — de uma experiência mais ou menos comum para um tipo de experiência mais ou menos extraordinário. O delusório institui uma gramática mais comum, em pelo menos dois sentidos do termo, isto é, normal e partilhado. Se por “delusório” queremos indicar o universo das questões imaginárias que obcecam, ocupam ou distraem alguém, vale enfatizar que essas questões podem ser partilhadas e compreendidas tanto com próximos quanto com estranhos. A partilha dessas aventuras imaginárias que nos tomam tempo é mesmo um elemento bem básico do chamado laço social. Em lacanês, é justamente uma falha na amarração desse laço que faz com que o delírio psicótico cumpra a função que seria da fantasia. O contato com o Real não é amortecido por uma narrativa mais ou menos aberta, mais ou menos revisável, mas por uma mitologia absolutamente singular, rígida e consistente, composta fora do laço social. Embora a experiência psicótica possa às vezes (parecer) se servir da mesma gramática normal e partilhada pelas outras pessoas, a experiência psicótica se dá em outro lugar. A experiência psicótica acessa coisas que quem está no laço social não acessa e, naturalmente, deixa de acessar coisas que parecem óbvias para quem está no laço. A linguagem pode até não ser privada, mas a experiência é. Segundo Stein, contudo, certas satisfações teóricas podem desenvolver processos psíquicos psicóticos que põem em risco certos cientistas, historiadores, psicólogos e etecetera — filósofos, penso, cabem nesse etecetera muito bem. Em outras palavras, o contato com certos objetos de pesquisa pode arrancar alguém do laço social, do senso comum, da atitude natural. Será verdade?
Pois eu acho que será. Correndo o risco de bancar o Simão Bacamarte, eu acho que já vi coisas dessa natureza. Nem estou falando de Heidegger, por exemplo, que salvo melhor engano é o exemplo que Stein tem em mente: graças ao imensurável desgosto que o filósofo da floresta experimentou para com tudo isso que estava -aí, sua imaginação foi capaz de conceber uma obra tardia que, profundamente solitária, pode ser chamada (conforme vi sendo feito no Colóquio ocorrido no início do mês) de política do poetar pensante. Acho que essa solidão teórica, esse solipsismo epistemológico pode, sim, ser encontrado se for procurado direitinho. Eu mesmo vejo, com fascínio, alguns tipos que associam e misturam tudo o que leem e, por meio desses compostos teóricos mui singulares, explicam tudo aquilo que veem. Explicam para os outros, às vezes quase sem paciência com quem não trilhou esse caminho singularíssimo de raciocínios por meio do qual foram parar numa casamata privilegiadíssima, sem paciência com quem ainda não entendeu um óbvio que qualquer um, olhando por meio de seu telescópio feito de sete vezes sete lentes, seria capaz de entender. Alguém poderia dizer que eu fico fascinado com o que se depreende discursivamente de um sentimento conspiracionista. Não nego. Diria até que um conspiracionismo suave é sinal de saúde psíquica em um mundo que precisa de subjetividades crédulas, bobinhas, compatíveis com a ortopedia sonsa de uma mentalidade liberal e do discurso da autoajuda (que vai dar, por supuesto, no estresse zen), mas não vou dizer. Meu fascínio é para com as armaduras douradas que eventualmente revestem esse sentimento conspiracionista, com os sentimentos tranquilos de certeza e confiança que acompanham o conspiracionismo na forma de teoria. Meu fascínio é para com o uso da teoria enquanto arcabouço justificacional da opinião formada sobre tudo. E é claro que, em vez de dar exemplos que dariam em processos, vou falar do único que posso, a saber, do meu próprio exemplo. E para fazer isso, vou fazer algo que Koselleck acha muito difícil e Bourdieu acha absolutamente incontornável, a saber, usar as categorias com as quais se compreende a realidade para compreendê-las elas próprias, por meio delas próprias.
Às vezes, nossa Geworfenheit, isto é, nosso caráter de sermos já sempre voltados para possibilidades constituídas nos cenários contingentes em que fomos lançados, parece com o do crescimento das melancias. Diferentemente de outras frutas, a melancia cresce de qualquer jeito, mesmo sem cultivo, sem canteiro. É só jogar a semente e esquecer, que a melancia pode muito bem crescer e se desenvolver sem que nos preocupemos muito com ela: ela dá seu jeito. Guardadas as devidas proporções, dá pra dizer que muitos e muitas de nós crescemos feito melancia nessa vida, no espaço que tínhamos, no tempo que nos coube, do jeito que deu e que demos. Considerando que a tal da entrada no laço social normal — no qual somos apenas delusórios e não completamente psicóticos — presume todo um cultivo, um cuidado, uma formação para a qual foram desenhadas as justíssimas instituições sociais, não é exagerado presumir que muitos e muitas de nós não entramos direito ou completamente nesse laço. Acho que essa hipótese ajuda a entender que tanta gente adulta, da qual se presume uma certa postura, uma experiência de vida e uma certa perspectiva razoável sobre o mundo, do nada, se nos pareça amalucada ao entrar para uma religião caça-níqueis, para um partido político de gosto muito duvidoso, para um estilo de vida esquisitíssimo, para uma seita qualquer. Crescendo e se desenvolvendo feito melancia, essas pessoas, me parece, encontram formas e fôrmas nesses grupos. Essas instâncias, me parece, dão estabilidade simbólica para as paixões que, como a de G. H., são vividas em um desconforto que só passa quando encontram uma comunidade em termos de semântica, de gramática e de imaginário. Quero sugerir que se o professor Stein tem razão ao dizer que certos objetos de pesquisa desorganizam as pessoas, também há os casos em que esses objetos cumprem uma função que, na falta deles, sempre vai haver uma igreja, um partido ou uma seita querendo cumprir. Em outras palavras, para quem coube a ventura da Geworfenheit das melancias, uns livros — de filosofia, ficção ou poesia, embora tais elementos não apareçam no trechinho do professor Stein — podem muito bem, obrigado, ser expediente de organização.
É claro que eu estou falando, também, de mim, sendo sincero como não se deve ser jamais. Todavia, me permito essa sinceridade imperdoável porque, como falei pra Lauren essa semana, são tantos encontros & despedidas nessa vida que é bom que a gente tenha em mente, de vez em quando, a compreensão de que toda palavra pode sempre ser a última. Cabe, pois, bem de vez em quando, falar algo que tenha alguma importância. E eu acho importante registrar que eu vi tanto o que o professor Stein descreve quanto o que estou propondo que existe, a saber, os casos em que os livros oferecem rima para aquilo que não tem solução. Os livros, pois, podem ser expediente de organização para aquilo que ia indo de qualquer jeito. Podem oferecer moldura narrativa ou meta-narrativa para o que seria, como digo para o André e para o Padilha, melted. A experiência sem conceito é melted, talvez dissesse um kantiano que cuidasse de uma página de memes. É borrada, sem contorno, indefinida, incompreensível, ininteligível. Os mesmos livros, pois, que podem arrebentar as molduras comuns e normais nas quais alguém vivia socialmente enlaçado são expedientes de estabilização dos limites que às vezes são demasiado maleáveis. Acho que essa diferente função dos livros pode ser compreendida com a ajuda de algumas coisas que a psicanalista Maria Rita Kehl fala, em O tempo e o cão, sobre as depressões.
Depressão é coisa séria, mas também é um nome ruim para uma coisa muito antiga, a saber, a melancolia que, desde Galeno, era um jeito de ser. Para Kehl et al (Foucault, certamente, mas prefiro não falar do que não li direito), porém, é o design da sociedade que empareda viva não só a melancolia rebatizada como uma série de outras perspectivas sobre o mundo. Segundo Kehl, a psicanálise tem de se portar, diante da depressão, ao contrário da postura que deve ter diante das neuroses normais — isto é, dos delusórios normais — pois enquanto os neuróticos estão cheios de fantasia e precisam murchar um pouquinho seus balões antes que estourem, o depressivo está com seu balão murcho e não dispõe de energia para enchê-lo. Se ao analista, diante da neurose, cabe jamais ser guru — e, por exemplo, sugerir uma meditaçãozinha —, diante da depressão, sugere Kehl, talvez seja o caso, sim, de ajudar a encher o balão. Tudo isso é muito técnico e não sei bem como isso deve ser feito em clínica. Basta, para mim, o esquema formal de Kehl: acho que há casos em que um livro (como uma terapia) murcha (ou estoura) o balão de alguém e há casos em que ele pode enchê-lo e fazer com ele uma escultura, dar a ele uma forma. Melancólicos, como psicóticos, estariam longe das praças, ruas e avenidas nas quais os neuróticos delusórios normais se ocupam de suas coisas. Uma meta-narrativa, seja ela filosófica, poética ou romanesca, pode oferecer um mundo mais ou menos organizado no qual alguém pode se mover como se nele habitasse.
Não quero que, nem por um momento, minha sugestão de que os livros que cumprem funções que também podem ser cumpridas por seitas deveriam, por assim dizer, substituir o adequado cuidado com o psíquico oportunizado pelas instituições responsáveis por esse cuidado. Jamais. Estou apenas sugerindo que isso, às vezes, acontece e que nem é tão difícil de constatar nos corredores de filosofia, letras & humanidades. Estou sugerindo que muitas pessoas — que nós, da família das melancias — deram um jeito de se salvar do jeito que deu, e que isso foi em parte proporcionado por uma pilha de livros do mesmíssimo tipo daqueles que, para outras pessoas, as afastou sem retorno do enlace social. Esse é o enredo de As palavras, de Sartre, aliás. Assim como Clarice, Sartre também falou dessa paixão que, caótica e desorganizada, pode assumir distintas formas. O pensamento de Sartre, contudo, frequentemente smells like teen spirit, e sua iconoclastia incendiária força a barrinha ao sugerir que contra toda e qualquer compreensão mais ou menos organizada do existir, deve prevalecer a compreensão da paixão inútil que constitui o âmago e o íntimo desse existir. É com as categorias de Sartre que eu tento compreender as categorias de Sartre quando suponho poder falar desse teen spirit, dessa vontade de ofender o mundo conservador dos adultos burgueses em meio aos quais ele cresceu. Em A náusea, por exemplo, Sartre vai sugerir que toda narrativa (ou meta-narrativa) é uma distorção da compreensão, uma perspectiva deteriorada de uma realidade que passa no ecrã da consciência “sem rima nem razão”. É precisamente esse o tipo de tese que, eu acho, pode colocar alguém em risco do ponto de vista psíquico. Talvez não seja casual, afinal, que já se tenha falado significativamente de um Sartre zen: narrativas, fantasias, tudo o que é da ordem do delusório seria entulho, má-fé, engano de si sobre o que seja a existência, a realidade, etc. Sua filosofia é mais ou menos como uma bebida destilada que até pode ser tomada pura, mas somente em pequenas doses, pois fica melhor em drinques. O meu, quem me acompanha sabe, foi composto com a doçura amarga da tônica saborizada de hermenêutica narrativista e enfeitada com folhinhas maceradas do coentro da teoria da história e uma rodela de cítrica teoria do romance. Quem chegou até aqui pode perceber que isso me deixa bem pertinho dos tipos esquisitos dos quais falei no início do texto, o que não neguei por nenhum instante. Acho, todavia, que o teor alcoólico do meu drinque é um pouquinho mais baixo e que a embriaguez que ele proporciona só vai até a alegria boba da incerteza, e não até o porre necessário para que a consciência se sinta certa sobre tudo.
“Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: ‘pensando nisso o tempo todo’. E com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque esperamos por elas”, se lê no primeiro décimo d'O homem sem qualidades. Eu certamente não sou um grande descobridor e todas as ideias novas que eu tive já existiam antes que eu as descobrisse sozinho. Mas entendo bem isso de pensar nisso e naquilo o tempo todo. Falei que voltaria ao tema da “obsessão-compulsão”, porque é nela que não está nem a razão nem a solução, mas a rima. Se já substituí o “delusório” de Wallace por cousas como fantasia y narrativa, quero, agora, substituir essa expressão psiquiatricamente negativa por outra, a saber, a de propósito ou, para ficar menos guru, a de ambição. Como já li por aí, o design simbólico-imaginário de nosso mundo vasto mundo faz com que passemos nosso tempo perdidos em anseios, mas sem nenhum senso de propósito, nenhuma ambição. É esse nível dos propósitos e das ambições que, me parece, sustenta os mundos narrativos y imaginários no quais nos sentimos mais ou menos em casa, vivendo ou tentando viver belas histórias. Sartre, assim como outros franceses, chama esse nível de desejo. Um deles, René Girard, em Mentira romântica e verdade romanesca, por sua vez, aponta para o fato de que Antoine Roquentin, o nauseado anti-herói sartreano, não deseja nada. Não tem ambição, não tem propósito. Daí que, naturalmente, seu sentimento de enredo e seu senso de realidade simplesmente desabem. Será que se Roquentin tivesse lido Sartre ele teria conseguido montar uma plataforma para alguma paixão que, mesmo compreendida como meio inútil, poderia ser vivida com entusiasmo? Não sei. Só posso, nesse caso, falar da minha própria experiência. Já faz quase 20 anos que leio esse Sartre, diluído em tônica e acompanhado de muitas especiarias (aliás, hoje acho que eu gosto até mais das especiarias do que do destilado de ontologia fenomenológica, mas deixemos isso pra outro texto). Essa relação já teve muitas fases. Acho que há uns dez anos a coisa toda tomou uma forma e uma direção bastante específica, cada vez mais específica, até um ponto em que eu me pergunto no que é que eu estava pensando o tempo todo antes do início desse período. O caso é que, guardada certa distância do acento negativo que paira sobre a palavra “obsessão”, é bem bom ter uma ou outra obsessão, uma ou outra paixão. A paixão da condição humana, segundo G. H., é a paixão de Cristo, mas “a graça da paixão é curta”. Será? Sei não. Pode ser que sim, pode ser que não. Segundo J.-P., a paixão humana é a inútil paixão de Cristo invertida, já que queremos voltar ao paraíso que nunca existiu e que somos condenados a inventar para tornar sustentável a insustentável leveza do existir. De novo, não sei não. A paixão, segundo V. H. — isto é, segundo eu mesmo — seja idêntica ou invertida àquela do Cristo, pode até ser meio inútil e ser curta a sua graça. No entanto, essa graça existe, sim, e pode ser experimentada. Essa graça possível pode, com a força silenciosa de uma estrela guia, organizar toda uma existência. Mas por aqui eu paro e me espalho.