A paixão pelo possível-enquanto-possível
Mais um esboço de rascunho de uma (est)ética do devaneio e da desrealização
Essa postagem vai ser (quase) apenas uma espécie de anotação, por meio da qual quero organizar minha última “comunicação” do ano. Contudo, antes de fazer essa anotação — pública, porque talvez seja do interesse de umas duas ou três pessoas que recebem notificações disso aqui —, vou, naturalmente, começar com uma digressão.
Ontem eu conversava com um amigo sobre o que vou chamar de “rumos da pesquisa”. Ele, como eu, tem algumas questões aparentemente indecidíveis. As minhas, contudo, são estritamente teóricas (são, quase sempre, questões sobre se isso ou aquilo pode, deve, não pode ou não deve ser considerado universal). As dúvidas dele, por outro lado, também passam por um elemento de futuro social e profissional. Em outros termos, ele se pergunta mais sou menos sobre o que vai fazer com o que produzir se optar por esse ou aquele caminho, sobre com quem vai conversar, com quem vai andar no recreio. Parece uma dúvida não-filosófica ou extra-filosófica, mas em um sentido muito importante não é. Digo isso com a consciência de quem, olhando para trás, não se lembra de ter se feito essa pergunta em momento algum e que, hoje, reconhece, por meio da privação, que é filosoficamente relevante ter com quem conversar sobre os textos que escreve, os livros que lê, as coisas que faz. Se por um lado eu sou eternamente grato aos meus orientadores de doutorado e mestrado pela confiança que depositaram em mim, em minhas próprias questões, em meu jeito de persegui-las, etc, por outro, constato o caráter solitário da minha pesquisa quando a comparo com a das pessoas que tiveram suas agendas de investigação montadas junto com — ou por — quem as orienta. Como disse meu amigo, a coisa pode ficar meio psicótica quando você envereda, de modo meio quixotesco, por um caminho que só você está vendo. Ele disse isso e lembrei de uma pessoa, já célebre e significativamente renomada, que tem uma conta em rede social e nela publica com alguma frequência algumas coisas que escreve em um site pessoal. Repito: é uma pessoa renomada, prestigiada, reconhecida. Mas ninguém interage com essa pessoa na rede social.
É correndo o risco de ficar parecido com essa pessoa — em sua quixotesca solidão, não em sua notável competência, que fique claro — que compartilho aqui essa anotação sobre aquilo que vou falar muito brevemente na manhã do dia 13 de dezembro.
O título da minha apresentação é A nostalgia do deserto: o habitar poético diante do acosmismo gnóstico dos ecos metafísicos no pensamento da finitude. Ok, ok, depois disso eu perdi todo o direito de alegar que minha pesquisa é solitária, não é mesmo? Vejamos se a coisa despiora se eu defino meus termos.
Nostalgia: estou pensando, aqui, naquele termo alemão, Sehnsucht. Sobre essa palavra, recorro ao texto de Gerd Bornheim:
“O conflito entre a limitação do real e a infinitude do ideal é constitutivo do movimento romântico e permite compreender o sentido da exigência de unidade. Estrutura, podemos dizer, a polaridade dentro da qual se movimenta a alma romântica, a fonte que a alimenta. A reconquista da unidade, do infinito sempre distante, determina a nostalgia romântica. Por isso mesmo, a nostalgia não é, como pretendem certos autores, um fenômeno primeiro do Romantismo. Primeiro, é o sentido do infinito, do absoluto interior à alma humana condenada à sua finitude, e que se extravasa no romântico sob forma de nostalgia, de Sehnsucht.”
Existe outro tipo de nostalgia, claro, a saber, aquele tipo de lembrança, alegre e cheia de gratidão, por aquilo que foi, isto é, pelo que se deu mas já não é. Não é dessa nostalgia alegre que falarei, mas dessa nostalgia-anseio por um não sei o que que a gente (acha que) já viveu mas que parece perdida para sempre. Uma nostalgia do omelete de amoras, que nunca mais vai ter o mesmo sabor, conforme o conto de Walter Benjamin — que você encontra neste link sendo rapidamente narrado e comentado por Maria Rita Kehl.
Muito bem: como é que se pode ter essa nostalgia-anseio pelo deserto? De que deserto estou falando? “Porque eu consigo pensar no deserto quineano como o deserto do Arizona, ou o deserto no meio do qual Chicago é erguida como um monumento de aço” e “tem o deserto dos retirantes do Portinari”, bem como “o deserto cantado pela Marisa Monte em Segue o seco”, conforme me disse em outubro, quando lhe mostrei meu resumo, o mesmo amigo antes mencionado — de certo modo desmentindo a digressão sobre solidão com a qual esse texto começou. Meu deserto, no caso, é o de Álvaro de Campos:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Deserto, portanto, é o tal solo que é tudo, do qual já andei falando por aqui. Acho que quando Heidegger diz, em Que é metafísica?, que “a angústia situa-se na secreta aliança com a serenidade e doçura da nostalgia (Sehnsucht) criadora”, isso pode ser articulado com a passagem, do §40 de Ser e tempo, na qual o filósofo alega que o estranhamento é mais originário que a familiaridade. Em outras palavras, quando a angústia desperta, desrealiza o familiar e nos reconecta com o Unheimlich, com o infamiliar, com o estranho e estrangeiro. Tudo se passa como se a angústia, secretamente aliançada com uma serena e doce nostalgia — um sereno, doce e criativo anseio por não sei o que, portanto —, fosse também uma lembrança de que por baixo dos cenários familiares há um deserto. Essa revelação, essa súbita lembrança, esse reconhecimento do originário, ontológico e estrutural da existência faz com que os sinais de algumas categorias ordinárias se revelem invertidos: habitar é, na verdade, errar; o lar é, no fundo, exílio; o tal solo que é tudo e sobre o qual tudo é, em seu íntimo, é areia ao vento. E daí por diante. De certo modo, portanto, me parece que esse “criativo anseio por não sei o que” funcionaria como o projetor de uma sala de cinema. A clareira, de certo modo, não é iluminada por uma fonte de luz neutra, mas por um projetor diante do qual o tal solo que é tudo se transforma em tela de cinema, isto é, superfície passiva sobre a qual projetamos histórias com cenários e personagens, histórias com as quais estamos sempre familiarizados. Se isso parece uma leitura “existencialista, demasiado existencialista” do pensamento de Heidegger é porque é isso mesmo. O fato de que Heidegger pode ser puxado para uma perspectiva assim é, digamos, atestada pela obra de Sartre, segundo Joseph Fell. Daí o que chamei de…
Ecos metafísicos no pensamento da finitude: com a licença que me dou para ser exagerado, digamos que ou a fenomenologia supera a metafísica ou é absorvida pela metafísica (ok, isso foi quase que literalmente uma formulação, maquiada, do nada informativo princípio do terceiro excluído). Em outras palavras, ou a fenomenologia é, conforme disse Heidegger em 1961, o nome do pensamento da finitude, ou é apenas mais um capítulo — superado, acabado, esgotado, mumificado, monumentalizado, às vezes traído em seu testamento, frequentemente depreciado em sua herança — da história da metafísica. Assumindo a primeira hipótese, portanto, a fenomenologia precisaria, de certo modo, escapar ao tom lúgubre e fúnebre da poesia de Álvaro de Campos, tão bem condensado, por exemplo, em O ser e o nada, obra na qual o “ser-para-si” é alma deserta flutuando sobre desertos, assombrando as miragens de cidades que surgem do obscuro fundo de paixão inútil, de Sehnsucht, desse anseio de não sei o que do qual são feitas essas almas desertas. Nada passa pelas almas desertas senão elas mesmas — isto é, aquilo que projetam — porque tudo morreu desde que, conforme alguns, Deus morreu. É esse clima existencialista que, me parece, é um eco metafísico em um pensamento que deveria ser por excelência da finitude. Quando penso nisso, lembro de uma frase de Joseph Fell, no começo de seu Heidegger and Sartre, que muito me surpreendeu e muito demorei a compreender adequadamente. Para Fell, a despeito do que de fato acabou acontecendo na história do pensamento, haveria uma profunda incompatibilidade entre fenomenologia e existencialismo. O “evento Heidegger” no campo filosófico francês teria sido, de certo modo, um extravio de certas possibilidades da fenomenologia (e o “evento Sartre” seria, de certo modo, essa transposição do São Francisco fenomenológico para uma filosofia na qual, nas palavras de David Mamet, temos justificativa filosófica para nossa tendência a dramatizar tudo, até mesmo o simples fato de um dia nascer nublado). Verdade seja dita e justiça seja feita, demorei porque sou demorado, já que antes de topar com a obra de Fell, Bornheim já havia desenvolvido de modo bastante exaustivo essa hipótese de um Sartre metafísico e da fenomenologia transformada em uma ontologia que não é senão uma longa lamúria sobre a impossibilidade da metafísica. O que Bornheim não diz, porém, e que Fell mostra, é que também não dá pra dizer que o existencialismo saiu do nada, pois Ser e tempo e os textos que cronologicamente são como que satélites de Ser e tempo meio que deixam aberta essa senda por meio da qual a fenomenologia pode ser desenvolvida como lamuriosa busca inútil por um fundamento que não existe, por uma razão suficiente que assegure em definitivo um semblante de racionalidade e necessidade para a realidade, para um grande Es muss sein! que ecoe sobre todas as coisas, abolindo o acaso, a contingência, a facticidade, dando densidade e peso tanto para as dores quanto para os amores. É daí que vem o elemento de acosmismo gnóstico que vai no título da apresentação.
Acosmismo gnóstico: a expressão cintilou para mim desde que a encontrei em Aspectos da modalidade, do professor Róbson Reis. Mencionei isso na postagem na qual registrei minha admiração e meu débito para com sua obra. Não vou me demorar nisso, já que é um assunto razoavelmente conhecido desde que Hans Jonas propôs, em 1958, que a filosofia de Heidegger ajuda a explicar o pensamento gnóstico por, digamos assim, afinidade eletiva. Mais recentemente, Peter Sloterdijk tem construído uma vasta obra filosófica que orbita este e outros traços do pensamento heideggeriano (recomendo fortemente um texto chamado O estranhamento do mundo, talvez mais sintético do que a célebre trilogia Esferas). Franco Volpi, aliás, em um livrinho muito fácil e muito gostoso, mostra as afinidades eletivas entre o gnosticismo, o existencialismo e o niilismo que, conforme Heidegger, em suas extravagantes e exageradas teses sobre história da filosofia, sugere ser o sentido secreto da metafísica e da história de sua evolução. Recenseando muito rapidamente a coisa, Volpi mostra que a coisa, no existencialismo, é um pouco pior do que no gnosticismo original, já que no existencialismo não há para onde voltar. Se somos errantes exilados em um deserto, cabe observar que é um exílio de reino nenhum, um exílio sem reino. Portanto, se a fenomenologia só pode se radicalizar como pensamento menos dualista mas ainda suavemente dualista como é dualista a metafísica — dualismo do ontológico e do meramente ôntico, do existencial e do meramente existenciário, do originário e do meramente ordinário, do estranhamento e da mera familiaridade, etc —, então é a treva, o niilismo, a ausência de um sentido que parecia estar em outro lugar até que se descobriu que estava em lugar nenhum, em nowhere, como parecem nos sugerir e lembrar o Vladimir, de Esperando Godot que, desistindo de novo, declara: “nada a fazer”, bem como Endre Tot:
A ambivalência entre no where e now here aponta, me parece, para a raiz do problema: a metafísica — e sua continuação, a mera física da visão fisicalista — sempre privilegiou o presente, isto é, aquilo que se apresenta, que se mostra para a percepção, para os estímulos nervosos dos órgãos sensíveis, para aquilo que tem matéria (que, conforme Berkeley muito divertidamente percebeu, é uma coisa por toda parte presumida mas que de nenhum modo se mostra, já que não temos um sentido para a percepção de “matéria”). A fenomenologia, contudo, pode ser uma luta — ou o lembrete de uma possibilidade extraviada mas guardada — contra os privilégios disso que se realizou, que se atualizou, que se efetivou. Porque — e repito essa formulação maquiada do princípio do terceiro excluído — ou a fenomenologia é uma coisa radicalmente diferente de tudo o que já aconteceu antes dela ou ela é mais do mesmo. Exigindo, de quem chegou até aqui, mais boa vontade do que mereço, ou a fenomenologia é uma sensibilidade absolutamente especial e única por meio da qual se abre uma possibilidade especial e única em termos de modos de viver e amar, ou ela é mais um jeitão de fazer papers. Eu, que preciso de papers porque preciso do currículo do qual preciso porque preciso de emprego, também preciso que seja possível ver a fenomenologia como certa paixão pelo possível. Essa é a hora em que eu falaria do habitar poético segundo Heidegger e de como ele me pareceu a grande saída, a via positiva, a solução para todos os meus problemas. De certo modo, eu meio que decidi que o habitar poético heideggeriano era condensado por uma pequenina e poética passagem de Heidegger and Sartre, de Joseph Fell, na qual o autor diz o seguinte:
"O que você busca está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça esse lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não reconhecer esse lugar. Em outras palavras, é porque originalmente o lugar pareceu distante quando estava perto que alguém, viajando para longe, buscou dele se aproximar."
Perto é suficientemente diferente do aqui-agora (now here) presentista e do lugar nenhum (no where) niilista, esses espólios e despojos que se encontram entre os escombros da metafísica — escombros nos quais opera a mera física. Perto é aí, no interior dos horizontes que circundam a clareira, horizontes que integram o futuro que vemos quando olhamos para a frente, os passados que vemos quando olhamos para trás, e os futuros passados que vemos quando olhamos para os lados. Perto: o espaço da clareira, circunscrito pelo possível que, na existência, precede, fundamenta e condiciona o atual, o efetivo, o meramente real e realizado. Perto: nosso entorno, recoberto pelo nevoeiro de sonhos, lembranças e devaneios. Perto: o lugar em que, enfim, a expectativa deixa de ser ansiosa aflição e se converte em alegria do poder-ser e, também enfim, a nostalgia não é melancolia, mas alegria do ser-sido. De fato, eu não sei se essa sensibilidade especial para o possível coincide com o que Heidegger compreende como o habitar que poeticamente se realiza enquanto metafisicamente procuramos longe o que está perto, nesse sentido especialíssimo de perto, no qual o meramente atual e efetivo já não esgota o que é. Mas se o habitar poético inclui a possibilidade de se relacionar com o possível enquanto possível, de se relacionar apaixonadamente com o possível enquanto possível, então ele é, sim, uma saída — uma saída talvez já nem estritamente filosófica, porque descomprometida com a busca por fundamentos necessários e razões suficientes.
Ou, talvez, esteja tudo errado e nada nessa minha (est)ética do devaneio e da desrealização seja pós-metafísico. Afinal, dado que o possível presume um excesso jamais atualizado que precisamente por não se atualizar exerce sua força silenciosa, o que seria mais platônico, em um sentido muito especial do termo — em um sentido muito sartreano do platonismo, vale dizer —, do que sustentar semelhante paixão inútil?
Vejamos o que me dirão meus pares, no dia 13, caso digam algo dessa minha extravagante receita de algo que deveria ao menos lembrar o sabor do omelete de amoras. Se acharem muito esquisito, provavelmente não dirão nada. De todo modo, eu precisava fazer alguma coisa com as amoras que, nessa época, já estão maduras.
O "entre" é o espaço do poético, dessa topologia da espacialização da dação de ser intermediária.