“Segundo Inácio de Loyola, o fundador da ordem dos Jesuítas e autor do mais famoso livro sobre o tema, os exercícios espirituais incluem o exame de consciência, a meditação, a contemplação, a oração em voz alta ou interior e outras atividades. Caminhar e correr mantêm a forma do corpo. De maneira semelhante, o exercício espiritual nos ajuda a lidar melhor com afetos e pensamentos perturbadores. Precisamos reconhecer que não temos controle sobre o que sentimos. Mais do que isso, boa parte do que pensamos escapa da nossa vontade. Temos muitos pensamentos que atravessam nossa mente, trazendo coisas boas e ruins. O que podemos fazer para expulsar os pensamentos ruins e deixar os bons predominarem? Uma solução, diria James, consiste em prender nossa atenção com bons temas. A metodologia loyolana vai na mesma direção. Ela inclui a repetição das boas histórias e dos bons exemplos da tradição cristã. No centro dela, está a leitura. A boa história é aquela que nos ajuda a atravessar a fome, a sede, o cansaço, a dor e a noite.
A essa altura, espero ter deixado claro que estou usando a palavra ‘espiritualidade’ em um sentido muito amplo, que aponta para três direções. A primeira delas é a da ‘vida interior’, a subjetividade. Uma das características dessa dimensão é a importância que concedemos para as coisas que dizemos para nós mesmos. Boa parte do tempo, dizemos algo para nós mesmos. Estamos, a toda hora, nos encorajando ou nos recriminando, nos reconfortando ou nos condenando. Podemos incluir nessa dimensão palavras, ditados, orações, mantras, todo o estoque de ideias encorajadoras que repetimos para nós mesmos sempre que precisamos. Todo dia.
Essa dinâmica entre a gravidade da vida e a graça do espírito está guardada nos tesouros culturais, nos escritos que são considerados valiosos por uma comunidade, e esse é o outro âmbito do que venho chamando de ‘espiritual’. Se a primeira dimensão aponta para um ‘espírito subjetivo’, aqui nos referimos a um ‘espírito objetivo’. Não tiramos do nada as palavras que usamos para navegar nas dificuldades da vida. Estas vivem em livros, em tradições culturais, em religiões, em filosofias milenares.
A terceira dimensão abrange as formas mediante as quais essas duas primeiras — subjetiva e objetiva — integram-se em uma terceira, a saber, o momento no qual saímos do casulo subjetivo e revivemos uma certa tradição cultural e comunitária. É a dimensão dos rituais e das práticas, o momento no qual furamos a bolha da subjetividade e nos conectamos com algo maior do que cada um de nós, individualmente. Essa saída de si mesmo é inevitável. Ela está ligada a pequenos hábitos de generosidade e compaixão, como dar ‘bom-dia’ e sorrir para um desconhecido. São formas da subjetividade essencialmente ligadas aos outros dois momentos do espírito. Temos compaixão e somos generosos (ou o contrário disso) em relação a pessoas, coisas e situações que estão objetivamente diante de nós.
O que nos interessa aqui é a prática da leitura. Ela ocupa um lugar central nos exercícios espirituais. Vamos lembrar que não é preciso letramento para ouvir a chuva caindo e para ver a luz do sol surgir na linha do horizonte. Sem letramento, no entanto, uma escrita qualquer é apenas um rabisco. O letramento se origina na cultura, por meio do aprendizado de convenções, um processo demorado. ‘Nós não nascemos para ler’, lembrou Marianne Wolf. O domínio dessa habilidade depende de capacidades e condições naturais, como a visão, a audição, luz, sinais, espaço, tempo. Mas o surgimento dos códigos linguísticos demorou séculos e exigiu, como lembra Wolf, até mesmo, novas configurações de nosso cérebro. A habilidade da leitura depende do treinamento de nossa capacidade de prestar atenção. Goethe disse que passou a vida aprendendo a ler: “as pessoas não sabem quanto custa, em tempo e esforço, aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso.
A prática da leitura preenche as três dimensões do espírito: a subjetiva, a objetiva e a ritualística. Ela está ligada ao domínio que temos de uma língua natural. Mas o português que falamos de berço nunca é mais do que um pedacinho de algo muito grande; por vezes, pode ser apenas rude, tosco, um arremedo de língua. A prática da leitura nos transporta para outra paisagem, rica e nuançada, e mostra possibilidades que não imaginávamos. Para que isso aconteça, a leitura nos pede apenas, como ritual, um cantinho mais ou menos sossegado e um pouquinho de tempo. Dali a pouco, estamos noutro lugar, em outro corpo, com outras pessoas. A noção de ‘exercício espiritual’ não é descabida. Não é por mero acaso histórico que as religiões e tradições espirituais que se fixaram a partir do período axial estão ligadas a fontes escritas.”
Parece Peter Sloterdijk, mas é
, em Caminhos e equívocos da escola brasileira. Talvez não pareça, mas é um livro sobre escola. Quebrando um pouco o protocolo por meio do qual faço uso desse espaço, não vou tecer mais comentários. Acho que o texto — que diz o que eu gostaria de poder dizer se pudesse — fala por si. Os grifos (os negritos) são meus, e também acho que não preciso explicá-los.O livro do professor Ronai está à venda no link. Basta clicar no título, no parágrafo acima.