As coisas andam meio paradas por aqui por razões de, digamos assim, “férias compulsórias”. Aproveito, então, para tirar as teias de aranha daqui e requentar um texto de março de 2021. Escrito no calor de indignações vividas no período da pandemia, parece mais adequado torná-lo público agora do que tê-lo feito no calor dos acontecimentos. Assim, desengajado, ele versa mais sobre nossa relação com a normatividade em geral do que sobre fatos, notícias sobre fatos ou notícias sobre outras notícias. Aliás, foi justamente a leitura (em andamento) um belo texto que muito fala sobre as estruturas da normatividade — Necessidade existencial, do professor Róbson Reis — que me fez lembrar que eu havia escrito esses modestos parágrafos sobre o assunto. Ele tem uma continuação, também bastante breve, que publicarei amanhã. Sem mais delongas, passo ao texto.
Na página 66 do texto da minha tese de doutorado, usei essa longa passagem de O ser e o nada:
Escrevo, vou fumar, tenho encontro com Pedro esta noite, não devo esquecer de responder a Simão, não tenho direito de esconder a verdade de Cláudio por mais tempo. Todas essas pequenas esperas passiva pelo real, todos esses valores banais e cotidianos tiram seu sentido, na verdade, de um projeto inicial meu, espécie de eleição que faço de mim mesmo no mundo. Mas, precisamente, esse projeto meu para uma possibilidade inicial, que faz com que haja valores, chamados, expectativas e, em geral, um mundo, só me aparece para além do mundo, como sentido e significação abstratos e lógicos de minhas empresas. De resto, existem concretamente despertadores, cartazes, formulários de impostos, agentes de polícia, ou seja, tantos e tantos parapeitos de proteção contra a angústia. Porém, basta que a empresa a realizar se distancie de mim e eu seja remetido a mim mesmo porque devo me aguardar o futuro, descubro-me, de repente como aquele que dá ao despertador seu sentido, que se proíbe, a partir de um cartaz, de andar por um canteiro ou gramado, aquele que confere poder à ordem do chefe, decide sobre o interesse do livro que está escrevendo – enfim, aquele que faz com que existam os valores, cujas exigências irão determinar sua ação. Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente ao projeto único e inicial que constitui meu ser, todas as barreiras, todos os parapeitos desabam, nadificados pela consciência de minha liberdade: não tenho nem posso ter qualquer valor a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém os valores no ser; nada pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e de minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do mundo e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem desculpas.
"Sozinho, injustificável e sem desculpas" está o sujeito que, para falar no vocabulário de um amigo heideggeriano, é a origem e a fonte da "normatividade" que estrutura o sentido do mundo em Sartre. Tudo se passa como se o mundo do humano do sentido fosse sustentado sobre a frágil trama dos investimentos de sentido que, amarrando o mundo com fios finos como teia de aranha, permite que o mundo seja compreensível. Ora, se essa teia de sentido é tão frágil assim, como ela não arrebenta? Que milagre é esse que faz com que a normatividade permaneça operativa a cada novo dia em que Deus, maldosamente, permite que os existentes humanos acordem no mesmo mundo em que foram dormir?
Já falei por aí que a filosofia de Sartre — essa paixão tão inútil, esse amor tão difícil — me faz sentir um cansaço porque ela tem algo daquilo que Peter Strawson chamava de metafísica revisionista: seu conceito de liberdade radical é tão radical que impõe a adoção de uma semântica de segunda ordem baseada num pathos quase masoquista, na qual absolutamente todo o percurso de um existente em sua aventura individual deve ser reelaborada, traduzida e compreendida na chave se não de uma autoria, ao menos de uma cumplicidade, de uma colaboração, de uma cooperação com as forças que nos trouxeram para onde estamos. Aliás, essa temática da cooperação e da colaboração foi explorada tanto por Sartre ao tratar dos colaboracionistas da ocupação alemã na França quanto por Hannah Arendt quando esta pensava sobre os judeus que cooperaram com o extermínio. Acho que uma elipse através dessa questão da colaboração e da cooperação é interessante para a elucidação de algumas coisas.
Vivemos, na simultaneidade da pandemia e do pandemônio político, uma experiência na qual os conceitos de colaboração e cooperação podem ser vigorosamente mobilizados para pensar o comportamento dos indivíduos e grupos que estão cagando para a pandemia a despeito de que a fabricação de cadáveres continue a todo vapor. Minha hipótese é que não se trata de "negacionismo", que o problema não é "epistemológico", "gnosiológico", não é um problema de entendimento. É muito mais simples — e amargo — se admitimos que milhares de brasileiros e brasileiras não se importam que a ceifeira despeje milhares de cadáveres por dia em valas comuns. E é sobre esse “não se importar” que eu quero falar.
Todos os dias, milhares de tuiteiros e tuiteiras dão testemunho de perplexidade com o fato de que nenhum fato produz tomadas de consciência. Eu mesmo já pennsei assim, há muito tempo, quando me dei conta de que ninguém afinal tinha a tomada da minha consciência sobre certos assuntos. Acho que hoje posso falar um pouquinho mais e me demorar melhor nessa mentalidade de colaboradores e cooperadores da ceifagem de vidas.
A ideia de que o conhecimento teria um poder constrangedor naquilo que Weber chamaria de "decisões eletivas" é uma ideia que talvez tenha nascido no Iluminismo — embora descenda de uma certa visão cristã sobre o arbítrio. Foi nessa atmosfera iluminista que surgiram ideias tão inacreditáveis quanto poderosas, como a "lei moral" kantiana ou o espetacular conceito de "vontade geral" de Rousseau. Tais conceitos nomeiam uma instância do espírito humano que deveria se alinhar, se sintonizar, se sentir constrangida, impelida, até mesmo obrigada a se posicionar de certo modo no campo prático. É claro que só a imensa distância histórica que nos separa de Rousseau e Kant permite que eu chame essas ideias de inacreditáveis (e perceba o quanto é emblemático que Sartre, em 1945, tenha a capacidade de dizer que “uma liberdade que reconhece a si mesma não pode senão querer sua própria perpetuação”). Esse mesmo elemento iluminista vai reaparecer no positivismo comteano, quando então parecerá possível planejar uma sociedade tendo em mente a hierarquia dos modos humanos de pensar — com o “racional” no topo. É mais ou menos dessa parte da montanha que eu acho que rolam pedras como essa ideia de que um fato (ou muitos fatos) teria a capacidade de produzir tomadas de consciência em indivíduos e grupos.
Não foi um nem dois iluminados que tiveram a decência de informar que as coisas não se passam dessa maneira. No mundo da Weltanschauung científica, Thomas Kuhn, por exemplo, ofereceu uma noção absolutamente incontornável como a de “paradigma”, desde a qual se torna compreensível que há sempre uma “situação hermenêutica” condicionando a legitimidade dos discursos. A noção de paradigma, porém, é muito antipática para essa Weltanschauung que entende o conhecimento como uma imensa caixa de ferramentas com as quais o mundo pode ser descrito e explicado para ser controlado. É um pouco desse pathos de controle que a gente observa nos divulgadores científicos, no twitter, no Jornal da Cultura, na Globonews ou no Roda Viva: acertam quando responsabilizam moralmente quem descuida de propósito e não evita a propagação de um vírus mas dão um testemunho de inacreditável ingenuidade quanto acham que isso se resolve enfiando fatos goela abaixo da população. É quase uma teoria da abiogênese aplicada ao âmbito da relação entre conhecimento e ação: se empilharmos informações, dados, estatísticas e manchetes jornalísticas, uma hora vai ter que nascer o rato da nova consciência, da decisão racional, etc.
São os indivíduos e grupos que animam as placas de sinalização do mundo, conforme Sartre. É, como falei, uma perspectiva extrema que, embora pareça exagerada para descrever a conduta de uma cotidianidade mediana, ajuda a compreender uma situação extrema como a colaboração e a cooperação com um regime de extermínio. Por mais que esse existencialismo, assim como o historicismo da hermenêutica filosófica, seja acusado de “relativismo” por exagerar a prevalência do sentido sobre a presença, o que senão exatamente essa prevalência aparece, em seu semblante mais aterrorizante, em uma situação como essa? A banalidade da fabricação de cadáveres parece explicável pelo fato de que fatos não produzem tomadas de consciência justamente porque o sentido precede a presença. É pueril — embora completamente compatível com o realismo ingênuo no qual radica a Weltanschauung cientificista — supor que um fato vai alterar, por si mesmo, o sistema de conceitualidade prévia que organiza as expectativas e experiências, a situacionalidade na qual os fatos são interpretados. Ninguém vai cair na real em razão de fatos porque a real não é um almoxarifado cheio de fatos, mas é antes feita “da mesma matéria que compõe os sonhos”. Nesse sentido, a raiva moral justificada dos divulgadores científicos que permanecem no horizonte biopolítico do sanitarismo é sustentada numa mesinha bamba de realismo ingênuo cientificista na qual fatos e realidades são confundidos em uma transgressão categorial nada menos do que “tóxica” para quem procura consolo nesses discursos. Vale lembrar que assim como Arendt chamou atenção para o caráter eminentemente comum e banal do indivíduo Eichmann julgado de forma espetacularizada, Sartre ganhou fama e renome internacionais quando decidiu escrever sobre a responsabilidade moral do colaboracionista e sobre a personalidade típica desse tipo social. Em outras palavras, se nem o horror do extermínio na guerra foi capaz de demover algumas pessoas de sua condescendência com o pior que o ser humano é capaz de produzir, como poderia o fato de uma pandemia difusa, na qual praças, ruas, avenidas e praias permanecem lotadas, ter essa excelsa prerrogativa?
Vamos permanecer ainda por um bom tempo nos sentindo idiotas por insistir, por nós e pelos outros, no isolamento enquanto tudo se passa como se nada se passasse. Acho, porém, que dá pra se sentir um pouco menos perplexo — e fundamentar melhor a “justa indignação” — se compreendermos que há um mundo de sentido no qual o colaboracionismo e a cooperação medram. Os elementos que aparecem nas situações extremas provavelmente são de um tipo bastante estável, que já organizavam o mundo desses indivíduos e grupos antes da pandemia e que permanecerão lá, intocados pela suave brisa dos fatos. São essas pessoas que estarão nos esperando nas praças, parques, ruas, avenidas, escolas e bares quando pudermos voltar para esses lugares. Estarão lá, intocadas pelo suposto “constrangimento compulsório” das placas e dos fatos, nos esperando como se nada tivesse acontecido.