A rua do Pilar, em Ouro Preto, é provavelmente o pedaço de chão mais íngreme no qual já pisei. A foto não faz justiça ao sentimento que acomete quem vê a subida se anunciando e, depois da curva, revelando mais um pouquinho de subida. Descobri a rua na noite de quarta-feira, quando me deixei guiar por um aplicativo que me sugeriu que ela era o caminho mais curto entre o Centro de Artes e Convenções da UFOP e a Praça Tiradentes, perto da qual eu estava hospedado. Foi quando subi a rua do Pilar pela primeira vez, desviando dos carros e motos que também erravam pelas pedras que a constituem, que me ocorreu uma ideia sobre o aspecto poético do espaço urbano de Ouro Preto. As ruas estreitas, ladeadas por calçadas ainda mais estreitas, são caminhos curvilíneos constituídos por arquitetura colonial. Casas, pontes, fontes e incontáveis igrejas espremem os transeuntes que lá habitam ou os muitos que por lá passeiam. Não vi semáforos e acho que não há condições espaciais para a circulação de veículos em alta velocidade. Tudo se passa como se a cidade fosse um pedaço intacto do século XVIII, um pedaço congelado de tempo que foi alagado por elementos da vida moderna que, em sua paisagem, se comportam de maneira meio ridícula, meio irracional. O corre-corre da vida urbana normal é substituído pela constância do esbarrar, do desviar e do ceder espaço, nas calçadas e nas ruas, para quem faz o caminho das pedras no sobe e desce de suas ladeiras. Para a preservação da beleza de sua arquitetura, é preciso torcer o estilo moderno de vida urbana até um limite que a prosa urbana fica estranha como um poema muito antigo é estranho para nossa sensibilidade. Da minha parte, torço deliberadamente alguns aspectos históricos da constituição dessa paisagem para que ela caiba nessa perspectiva poética: tudo se passa como se Ouro Preto fosse urbanisticamente irrazoável por e para que a beleza e a historicidade sobrevivam. Em outras palavras, tudo se passa como se Ouro Preto fosse um lembrete de um tempo em que o tempo permitia certas grandiloquências às custas da razoabilidade e do conforto.
Na semana que ficou pra trás aconteceu o XII Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, no Centro de Artes e Convenções da UFOP, promovido pela Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia. Um evento grande e já muito consolidado pelo esforço continuado de uma rede que é muito forte. Fui parar no evento porque sou metido e achei que algumas coisas que escrevi nos últimos anos podiam fazer algum sentido para historiadores que gostam da teoria e da história da própria disciplina. Sem muita surpresa, eu era um dos poucos que, por lá, ostentava os diplomas contraídos na área da filosofia. Com um pouco mais de surpresa, constatei que eu meio que conseguia entender a língua falada pela galera da historiografia e que, de certo modo, como minha intuição sugeria, talvez a minha própria língua teórica seja um dialeto compreensível pelos parentes e vizinhos disciplinares. Uma experiência comparável ao meu contato com o grupo de epistemologia do romance na ABRALIC de 2018, também realizada em Minas Gerais, só que em Uberlândia. Em suma, para onde quer que eu me movesse, tinha com quem conversar sobre Ricoeur e Koselleck, sobre Nietzsche e Hegel. Passei dias conversando sobre, digamos, filósofos, de um jeito que não é o jeito de conversar da galera da filosofia — que frequentemente fala ou de Hegel, ou de Nietzsche. A galera da teoria e história da historiografia, em geral, faz as coisas de um modo menos fulanizado do que a galera da filosofia. Mesmo que às vezes a bibliografia filosófica pareça misturada aos textos lidos pela galera da teoria e da história da historiografia, o jeito de ler os mesmos textos é diferente.
Quando trabalhei com e para os padres palotinos, aprendi com meus alunos seminaristas o conceito de “leitura orante”. Em suma, tem um jeito de ler um texto que se dá como se este fosse uma oração, em uma intencionalidade específica por meio da qual se sustenta uma relação com o sagrado, digamos assim, para encurtar a conversa. Mutatis mutandis, na filosofia, há todo um jeito de ler os textos que tem um je ne sais quoi de quase-orante. Talvez seja algo herdado dos mais ou menos mil anos de serviços prestados à teologia, do estilo escolástico da disputatio, não sei — e acho que é algo que já deve estar historicamente topografado, inclusive — mas a filosofia stricto sensu, compreendida aqui como prática discursiva lastreada culturalmente enquanto profissão, tem um jeito de ler os conceitos e argumentos que tende a ser menos mostrativo do que aquele que vi sendo realizado pela galera da historiografia. Se tratava muito menos, nas mesas que assisti e da qual participei, de demonstrar isso do que de mostrar aquilo. Os próprios debates filosóficos, as diatribes, as disputas, etc, eram mostrados em uma intencionalidade que sustentava o próprio acontecimento dos debates, sem tanto interesse nas filigranas a partir das quais se decidiria que este argumento seria mais válido do que aquele outro. Tudo se passa como se o olhar historiográfico sobre os textos e acontecimentos do mundo intelectual estivessem sendo olhados e mostrados em um patamar de menor credulidade ou dependência da correção ou da validade daquilo que estava de fato em jogo nas disputas entre teóricos.
Evidentemente, estou fazendo um recorte. Dos 12 seminários temáticos, assisti dois (historiografia geral e teoria e filosofia da história) e participei de um deles (do segundo). O que vi, porém, foi suficiente para que eu, como uma espécie de jesuíta, tenha dito e repetido algumas coisas. Uma delas foi que as aulas de história da filosofia que eu tive e as que eu dei são frequentemente feitas de muita filosofia e pouca história da. O fato de que a gurizada tem de, por exemplo, ler Kant em algum momento da formação faz com que as aulas de história da filosofia moderna II frequentemente sejam compostas pela leitura estrita de algumas partes importantes da estética e da analítica transcendental. A alternativa a isso é pegar as mais ou menos 15 aulas de uma disciplina de história — contemporânea II, por exemplo — e fazer com que sejam leituras comentadas de mais ou menos uma dúzia de textos de filósofos. Insisto: muita filosofia, pouca história da. Alguém que, como eu, entra na faculdade de filosofia porque leu, na adolescência, algum romance da história da filosofia, pode até não tomar um susto na hora em que uma disciplina de história é, na prática, um longo exercício de exegese, com foco em conceitos e argumentos. Mas é uma percepção que pode — e só posso oferecer meu testemunho para alegar isso — acabar se formando retroativamente, com o tempo e com a reflexão. Desde a época em que me formei, contudo, vejo mais ênfase em uma abordagem da filosofia a partir de seus problemas do que de uma abordagem propriamente histórica que, até onde percebo, às vezes parece meio démodé. Enfatizo o caráter exegético da leitura porque certas leituras já me permitiram perceber que dá pra contar histórias de conceitos quanto apresentar conceitos em histórias, em modos de pensar diferentes daquele da filosofia centrada em argumentos. Desconfio que muito do que vi sendo dito sobre pensadores da filosofia e de outros campos teóricos (vi belas apresentações sobre autores tão distintos quanto Nietzsche, Alexandre Koyré, Jacques Rancière e Georges Didi-Huberman) foi o que eu sempre — mesmo que esse “sempre” seja meio retroativo, meio nachträglich — quis das aulas de história da filosofia que eu tive que ouvir e das que tive que dar. Talvez esse tipo de discurso presuma e dependa do treinamento para a historiografia, eu não sei. Meus hermeneutas e historiadores preferidos me fazem crer, porém, que eu ainda tenho tempo de me apropriar desse “jeito de fazer as coisas”, como diz a Alexandra, dessa maneira que deixou de ser paradigmática em filosofia, caso um dia tenha existido para além dos ensaios mais quase-lovejoyanos de tipos que já estão aposentados ou já se foram.
Quando eu vi a inclinação da rua do Pilar, pensei que não conseguiria subir. Que iria infartar na metade dela, que morreria ali, carregando Ricoeur e Koselleck na mochila com o brasão da minha alma mater. Todavia, enquanto subia devagarinho o caminho das pedras, percebia que no fundo eu gostava muito daquele poema afrontoso — digo isso sabendo que ignoro propositalmente as razões reais e, portanto, históricas para que Ouro Preto tenha se tornado o que é — que é a estrutura urbana dessa cidade. Era, afinal, aquilo designado por uma expressão lembrada pelo professor Sérgio da Mata — e que já mencionei em uma nota de rodapé do artigo que mais gostei de escrever —, a saber, a heterogenia dos fins. Ele lembrou disso quando eu comentei, sobre uma apresentação, que os filósofos Heidegger e Sartre e o historiador Koselleck parecem dizer o mesmo quando dizem que as coisas sempre se passam diferentemente daquilo que se imaginava, esperava, desejava. Mais ou menos como os personagens de Eça de Queiroz concluem que falharam a vida, no final de Os Maias. Depois de pensar que morreria na ladeira da rua do Pilar, comecei a pensar que talvez morresse no próprio evento, já que tanto falei que aquele ambiente era um ambiente pelo qual eu tinha procurado e esperado por muito tempo. Até imaginei que seria poético morrer no evento em que me senti em casa. Mas, como disseram filósofos e historiadores, as coisas sempre se passam de um jeito diferente daquele que imaginamos.