A hermenêutica "enquanto" fundamentalismo
Às vezes parece que a única certeza é a incerteza, embora tudo deva se passar como se não
Talvez o tom quase proto-religioso dos meus últimos flertes interpretativos sobre o sentido histórico e filosófico do ainda se ocupar com fenomenologia, presentes nas últimas postagens, tenha assustado um pouco vocês que recebem esses textos por e-mail. Para fins de esclarecimento, preciso deixar claro que se as eleições fossem hoje e eu tivesse de eleger uma bandeira que simbolizasse o que penso que faço, não seria estritamente aquela do que se convencionou chamar de fenomenologia. Também não seria aquela outra que tem bem mais capilaridade cultural, a saber, a do existencialismo (enquanto adjetivo). Como falei meses atrás para o audacioso y escrupuloso Pedro Igor, se eu fosse obrigado a escolher uma bandeira, seria a da hermenêutica. Tomaria essa posição por uma razão muito simples, a saber, a de que mesmo os modos mais rígidos, exatos e restritivos de pensar são, em um sentido muito especial e ao mesmo tempo muito fundamentalista dos termos, modulações do interpretar. Vejamos se cubro essa aposta. Já antecipo que se eu cobri-la, é porque mostrei algo que se mostrou passível de certa sintonia interpretativa para com quem o que eu mostrei se mostrou. Só digo isso de antemão porque a possibilidade de cobrir a aposta nas “plurais modulações do interpretar” envolve um abandono da pretensão de produzir conclusões incontornáveis e constrangedoras como aquelas produzidas por silogismos ou operações matemáticas. Para tais fins, nada melhor do que começar de modo elíptico e me aproximar indiretamente da coisa.
Uns três ou quatro anos atrás, esbarrei num artigo deliciante, que misturava Martin Heidegger com Wolfgang Iser. Enquanto este oferecia uma fenomenologia do ato de leitura e falava — vou usar a expressão em inglês porque gosto da sonoridade dela — de um wandering viewpoint do leitor pelo texto, aquele falava — uso o alemão pela mesmíssima razão que usei antes o inglês — da Geworfenheit, da estrutura ontológica do estar já-sempre lançado projetivamente em circunstâncias compreensíveis. De modo talvez algo simplório, o autor declarava que as estruturas da leitura e do existir são meio que a mesma: no ler e no existir a gente vai projetando expectativas que se cumprem ou não se cumprem. Sem essas expectativas prévias — esses pré-conceitos, para falar com Gadamer — a gente simplesmente não teria qualquer experiência significativa. Tanto as páginas quanto as coisas não se conformariam em totalidades significativas. Na época, gostei muito desse texto porque ele conferia não só uma nova metáfora para meu narrativismo (isto é, não somos tanto autores quanto leitores das histórias de nossas vidas) como, mais do que isso, oferecia a possibilidade de compromissos ontológicos que combinavam com os anseios dos pensadores narrativistas. Mesmo que no fundo eu sempre desconfie que os compromissos ontológicos são só uma maneira de disfarçar que no fundo o que sustentamos sejam apenas sempre flertes interpretativos — flertes às vezes duradouros e com os quais temos muito envolvimento —, no gênero dos papers parece sempre que pega bem demonstrar preocupação com o estatuto ontológico das coisas. Mas estou apresentando rápido demais algumas coisas que deveriam aparecer só no fim. Vou passar a palavra ao homem que carregava o balde na floresta. Diz ele, no §32 de Ser e tempo:
“A simples visão das coisas imediatas na lida com elas comporta de um modo tão originário a estrutura da interpretação que precisamente uma apreensão de algo, por assim dizer, livre do ‘enquanto’ demanda uma certa readaptação. O nada-mais-que-ter-uma-coisa-diante-de-si se dá no cair em um ver essa coisa enquanto já-não-compreendê-la. Essa percepção carente de ‘enquanto’ é uma privação do simples ver compreensivo, não mais originária do que este, mas precisamente derivada deste.”
Seu Martin sempre diz muitas coisas, ainda mais em um trechinho predatoriamente descontextualizado e traduzido de outra tradução. Felizmente eu tenho lido seu livro mais famoso sob o amparo de bons guias. Mesmo assim, me permito dizer algumas coisas que meus amigos heideggerianos já achariam coisas demais. Por exemplo: desconfio que a tal “estrutura do ‘enquanto’”, elaborada por Heidegger, já começa a se mostrar lá pelo século XIX, quando a hermenêutica enquanto disciplina começou a encontrar um destino inesperado, a saber, o de subitamente parecer um caminho para um pensamento que nunca mais se esconderia sob o teto da metafísica. Tanto do ponto de vista das ideias quanto dos eventos, a filosofia (enquanto metafísica, vejam só) começou a perder prestígio e credibilidade. Evidentemente, muitas foram as tentativas de insulamento em novas construções de pedra — e Rorty, ao meu ver, acerta em cheio ao colocar Husserl ao lado da galera que correu para as ciências duras em busca de novas certezas. Todavia, a natureza essencialmente interpretativa do existir se mostrou nessa disciplina que, no início do XX, ganhou um lugar importante no esquema heideggeriano (ao menos por um tempinho, embora Gadamer considere que o pensamento de Heidegger ficou justamente mais hermenêutico quando justamente deixou pra lá a coisa enquanto “bandeira”). Leio esse trechinho de Heidegger e tendo a pensar assim: ok, no século XIX apareceu uma certa relatividade essencial das coisas, uma relatividade recalcada e reprimida por excelentes razões, mas que foi de certo modo acolhida por certo historicismo que, amadurecido, ficou mais suave. Aliás, outra coisa interessante que Rorty alega é que talvez as razões para esse recalque da relatividade tenham sido mais políticas do que filosóficas. O pragmatismo, segundo ele, embora guarde lá suas semelhanças com o pensamento de Heidegger (uma lucidez especial para a importância do prático, do concreto), também tem lá suas semelhanças com a tradição husserliana-cientificista: a coisa não pode ser bagunça, especialmente do ponto de vista político, e é preciso que a filosofia enquanto instituição (justa, como gosta de dizer Ricoeur) não assuma compromissos pouco cívicos. Nesse sentido, é incontornável lembrar que Heidegger por muito tempo viveu no mato e nele está sepultado.
Passei anos infernizando meu amigo Gabriel Henrique com uma questão: o que vence, em Heidegger? A estrutura ou a história? O transcendental ou o hermenêutico? Parmênides ou Heráclito? O ser ou o tempo? Lendo (sobre) o Heidegger mais tardio, a gente vê uma perspectiva que tenta, por meio do pensamento do Ereignis, mostrar que as coisas são meio que a mesma. Todavia, o pensamento de Heidegger não se dá no vácuo, mas diante de vinte e cinco séculos de louvor do que, infinitamente sólido, rígido e imperecível, encolheu infinitamente na solidez invisível do estrutural, do transcendental e — única mudança mais significativa, operada por Kant e radicalizada por Heidegger — agora então, enfim, finito. Para um pensamento educado na metafísica e, depois do desmoronamento desta, refugiado em certezas de outras naturezas, o pensamento de Heidegger pode parecer um elogio da bagunça. Como observa Ernildo Stein, se o pensamento de Thomas Kuhn já foi suficientemente ofensivo ao propor que os paradigmas operam como imprevisíveis terremotos que não pedem licença para a normalidade das práticas e desmoronam cidadelas forjadas em certezas até então insuspeitas, o pensamento heideggeriano da história do ser é um acinte ao domínio dos compromissos (aparentemente ontológicos mas, sobretudo) cívicos do pensar. Já nos final dos anos 80 do XX, Günter Figal — o mesmo que, escandalizadérrimo, abandonou a cátedra em 2015, com um gesto que inaugurou o que um amigo gosta de chamar de figalismo* — se perguntava o que dava pra fazer profissionalmente com a filosofia de Heidegger, aparentemente tão pouco comprometida com o âmbito prosaico e ordinário das instituições. Afinal, a universidade é uma instituição e é nela que a filosofia mora, embora dê seus passeios.
Em suma e sintetizando: penso que há certas relatividades que são pouco cívicas e institucionalmente desinteressantes e que, portanto, são talvez menos falsas do que francamente indesejáveis, talvez até mesmo socialmente perniciosas. Por essas — e por várias outras — hoje talvez pareça que a hermenêutica é só uma epistemologia fraca, talvez meio mole. Por muitas razões não-filosóficas — e talvez por algumas mais propriamente filosóficas — a hermenêutica, sempre tão querida por quem gosta de pensar arte ou religião, é meio démodé e às vezes deixa a impressão que está lá, parada, nas páginas do já sessentão Verdade e método, esperando que alguém faça alguma coisa com ela. Talvez fique parecendo que a certeza da universalidade da interpretação é mais ou menos como a do Cogito, algo da ordem do que se constata e se diz “tá, e daí, o que eu faço com isso?”.
Você existe com isso, meu bem. Você existe interpretando.
Preciso confessar que meu fundamentalismo hermenêutico não nasceu nem nas páginas de Heidegger, nem nas de Gadamer, muito menos nas de Ricoeur — sobretudo porque este certamente não é um fundamentalista hermenêutico, sendo talvez antes fenomenólogo do que hermeneuta. De fato, hoje eu acho que a gente (ainda) vive naquilo que Jean Greisch, salvo engano no ano que nasci, chamou de L'âge herméneutique de la raison. Esse autor, razoavelmente vinculado ao jeitinho demodé de pensar a filosofia como modo de viver, publicou, em 2013, um texto no qual alegou que todo o legado filosófico de Paul Ricoeur poderia ser sumarizado por uma expressão de Milan Kundera, a saber, “a sabedoria da incerteza”. Romancista interessadíssimo em não ver seus romances reduzidos ao filosófico, ao histórico ou ao político, Kundera passou a toda sua carreira vendo essas reduções acontecendo. A “sabedoria da incerteza” é a sabedoria do romance, não a da filosofia. Aquele é muito mais jovem do que esta: quando ele nasceu, a filosofia estava justamente na época da certeza do Cogito emergindo como fresquinha e refrescante novidade. Curiosamente, um pouco antes da descoberta cartesiana, Cervantes já havia mostrado o mundo como incerteza por meio do pobre Alonso Quijano. Depois, quando Leibniz via em tudo uma harmonia necessária, absoluta e absolutamente fundamentada em razões suficientes, Sterne descobria que era possível contar a história de Tristram Shandy só na base da elipse, do episódio, da digressão, da narração daquilo que absolutamente não importa, não interessa, não é necessário, não tem nenhuma razão suficiente para que seja em vez de não ser ou de ser outra coisa. Quando Hegel descobria o progresso, Flaubert descobria que com o progresso também progride a tolice. E daí por diante. É contra Heidegger, aliás, um dos protestos mais importantes de Kundera: por que apenas a poesia, e não o romance, pode nos mostrar o que é essencial? Apaixonado pelo caráter schwer, grave, pesado e solene dos versos poéticos, Heidegger teria deixado intocado, para o romancista, aquele que é precisamente o domínio de nossa cultura no qual mais se poderia aprender sobre a existência (e sua história). Diante da frivolidade superficial da existência impessoal, Heidegger via no filosofar um compromisso com a complexidade que só um ânimo pesado, um Schwermut, uma melancolia poderia assegurar. Kundera, enquanto mestre da incerteza, me parece alguém que nos lembra que a existência tem qualquer coisa de leve, excessivamente leve, insustentavelmente leve, completamente destituída do peso, da gravidade, da solenidade, da densidade, da rigidez das certezas buscadas nos risíveis amores e nos risíveis compromissos ontológicos. Todavia, esse caráter risível do pensar (“enquanto o homem pensa, Deus ri”, disse Kundera no ano em que nasci) é de uma leveza tão insustentável quanto o peso. Como talvez a sabedoria da incerteza seja própria do romance e incompatível com a filosofia, é quase que indiretamente que vejo no olhar hermenêutico uma hospedagem para esse tipo de sabedoria tão pouco cívica, talvez até meio obscena, certamente estetizante, que o romance oferece. Mesmo não sendo estritamente filosófica, a sabedoria da incerteza parece ter lá sua semelhança de família com a ubiquidade do caráter interpretativo no existir — com, talvez, um plus de bom humor.
Em A náusea, Sartre, por meio dos diários de Antoine Roquentin, declarou que o passado é um luxo de proprietários. Não sei se crenças, convicções e certezas são, como o passado, um luxo de “proprietários”. De certo modo, acho que sim. Contudo, acho que a performance da crença, da convicção e da certeza é uma obrigação de funcionários. Mesmo que a filosofia possa ser concebida uma forma de guardar as relatividades e incertezas — naquele sentido de “guardar” oferecido pela poesia de Antônio Cícero, por exemplo —, reconheço que frequentemente pega bem ser mais assertivo. Assim, quero dizer que com essa reflexão, pretendo encerrar essa sequência de textos mezzo confessionais, mezzo metodológicos, nos quais só falei de como eu vejo a coisa de ver as coisas filosoficamente. Doravante, tentarei parecer mais assertivo.
*Meu amigo jamais definiu o figalismo, mas não é difícil: trata-se da necessidade — social, cívica — de se mostrar moralmente escandalizado, em público — isto é, no pequenino mundo da filosofia profissional, dos institutos de humanas, etc —, especificamente com a biografia de Heidegger.