A filosofia que celebra a si mesma
Sobre um modo de fazer filosofia olhando para os próprios pés
Bilinda Butcher, do My Bloody Valentine, completou 62 anos ontem. Descobri a banda mais ou menos por 2008, por meio do então ainda potente site last.fm, que viria a ceder seu lugar para outras plataformas de streaming de música. O EP You made me realise é de 1988. Três anos depois, a banda lançaria o Loveless, álbum por meio do qual o nome da banda — e o próprio álbum — se confundiu com o gênero shoegaze. Algo como “olhar para os sapatos” parece estranho para nomear um gênero musical, ainda que o termo tenha sido cunhado por jornalistas para designar músicos meio introspectivos, que tocavam seus instrumentos sem olhar muito para o público, perdidos nas próprias atmosferas afetivas proporcionadas por camadas e mais camadas de distorção das suas próprias guitarras. Mesmo que não tenha durado muito — antes de um revival que já dura mais do que a cena original, vale dizer — a cena aberta pelo MBV ganhou um apelido: the scene that celebrates itself. A cena shoegaze celebrava a si própria por razões de distintas ordens. As razões mais “internas” são o fato de que o shoegaze é todo sobre atmosferas afetivas muito especiais. “Never lose that feeling”, diz o título de uma canção que também intitulou uma coletânea em homenagem aos artistas dessa cena. “Still in a dream” é o título de outra coletânea, apontando para o fato de que, como diz o título de uma canção do MBV, quando você acorda, você permanece em um sonho. Os shoegazers, portanto, mantinham vivo o lembrete de Shakespeare e Calderón de la Barca, de que a vida é um sonho no qual o mais importante é preservar that feeling, aquele sentimento, aquela atmosfera afetiva de estar meio que sonhando, em uma aventura introspectiva em meio ao mundo hipercinético da MTV, da guerra fria e de todo aquele clima de caos que pairava sobre o mundo nos anos 80, como o clipe de You made me realise que vai ali acima. Já a razão mais externa para que o shoegaze fosse uma cena que celebrava a si própria é que o shoegaze era meio que lado B nesse período entre o fim dos anos 80 e o início dos 90. Ainda que algumas bandas ou canções tivessem alcançado um pouquinho mais de sucesso por soarem parecidas com o grunge ou com o britpop, no geral, os shoegazers tocavam uns para os outros. Viciados em atmosferas afetivas que só eram alcançadas por avalanches de distorção, os shoegazers se enfurnavam como adictos em inferninhos nos quais consumiam sujeira de guitarra e se perdiam em devaneios. O shoegaze era feito dos shoegazers para os shoegazers.
Assim como no rock, na filosofia também dá pra distinguir quem produz notas mais claras e límpidas e quem produz nuvens de conteúdo difuso e de difícil separação. Esse é um tema bem legal e sobre o qual eu gostaria de falar uma outra hora. Por hora, quero comentar outra coisa. Quero começar mencionando um artigo de um autor francês, de 1972. Nesse artigo, o autor sugere que a fenomenologia — aquela filosofia iniciada ainda no século XIX, por Edmund Husserl — é uma espécie de combate. Embora não seja estranho que um método ou modelo teórico seja encarado como um instrumento de combate, talvez pareça estranho que a fenomenologia, aparentemente tão sóbria e meramente comprometida com a descrição de algumas estruturas da experiência humana, seja vista dessa forma. Todavia, é o que há 51 anos esse autor sugeria: diante de uma visão de mundo que, de modo bem grosso, concebe tudo como coisa, como segmento de matéria mais ou menos organizada por forças físicas, químicas e biológicas, a fenomenologia, ao propor que todas as significações medram em um solo originário feito de experiência consciente, compreensão prática ou algo que o valha, não tem como não ser uma luta contra certa tendência de nosso pensamento, a saber, o de, como a Medusa, transformar tudo em pedra objeto do conhecimento. Sete anos depois, em 1979, um outro autor, norte-americano, transformou em imperativo essa ideia desse francês e foi um pouco mais longe: ou a gente sai desse jeito de ver as coisas — e de nelas viver e habitar — ou é o niilismo, no qual vamos todos perecer ou, pior ainda, vamos permanecer sem sequer perecer. A coisa é bem mais complicada e comprida do que isso, mas de modo bem grosso, quero dizer que ainda na segunda metade do século XX parecia possível pegar a fenomenologia com as mãos, mostrar ela para as pessoas e dizer “vejam, aqui tem um negócio precioso, todo um outro programa existencial, quem sabe até civilizacional, no qual a gente não precisa pensar e viver de modo tão estreito”. Mais ou menos como os roqueiros estavam fazendo no Woodstock, talvez, ainda que de modo distinto, com suas guitarras sujas?
Nos anos 50, Jean-Paul Sartre, célebre autor de uma significativa obra em fenomenologia, declarou solenemente que não era um filósofo, mas um ideólogo. Filósofo é quem faz filosofia e filosofia é aquilo que abre e dá as diretrizes de um — na falta de uma palavra melhor, me sirvo dessa — paradigma. O Timeu de Platão foi paradigma sobre as coisas do cosmos. Descartes e Galileu abriram o paradigma moderno. Para Sartre, o paradigma do século XX era o marxismo e os historiadores mais caridosos talvez admitam que se sugira que de 1917 até 1989 o marxismo esteve mesmo na base de um modo de pensar e viver que tentou ser paradigma e terminou vencido, se esgotando em suas potências mais ou menos como o rock, que hoje já não comove ninguém. Assim como Jimi, Jean-Paul também estava preocupado com a Guerra do Vietnã. Sartre, todavia, não usava uma guitarra para imitar os sons da guerra, mas lutava com palavras, na posição de sacerdote de uma filosofia que, diferentemente do seu existencialismo — palavra que, como shoegaze, foi inventada por jornalistas e reivindicada por seus praticantes —, estava viva e explicava então o mundo. Ainda que eventualmente tenha declarado que sempre permaneceu um “existencialista”, 1) deixou de se portar publicamente como um e 2) perdeu a cena na qual ser existencialista, como ser roqueiro, era paradigmático e não algo como uma caprichosa esquisitice. François Noudelmann, em Un tout autre Sartre, sugere que Sartre passou muito tempo de sua vida fazendo coisas por dever, por culpa burguesa, coisas que às vezes não tinha a menor vontade de fazer mas sentia que devia, como se o princípio de realidade não devesse vir em socorro ao princípio de prazer mas, pelo contrário, devesse sufocá-lo. Exceto por algum traço identificável em Saint Genet ou O idiota da família, não se vê mais nenhum compromisso de Sartre com a fenomenologia que inspirou o Esboço para uma teoria das emoções, A transcendência do ego, O imaginário e O ser e o nada.
Convenhamos: Sartre nunca achou que a fenomenologia era um instrumento de combate. Talvez Heidegger, especialmente em sua cabaninha, tenha pensado em um combate contra esse jeito de conceber e habitar o mundo que se tornou o normal e o padrão dos últimos séculos. Porém, nessa época — a mesma em que Jean-Paul fumou charutos com Ernesto — o autor já não reivindicava para si o epíteto de “fenomenólogo”. É verdade que, em 1962, Heidegger declarou que ao mesmo tempo que lhe parecia que o “tempo da filosofia fenomenológica” havia passado, “entretanto, em sua essência, a fenomenologia não é um movimento: ela é a possibilidade do pensamento”. Um truque genial: onde quer que alguém esteja propriamente pensando, de modo adequado, lá estará a fenomenologia, mais ou menos como apresentada na célebre §7 de Ser e tempo, que tanta gente já teve que comentar em exames nas faculdades de filosofia. Aliás, o truque genial responde aquela inquietação levantada por Günter Figal, no comecinho de seu Fenomenologia da liberdade: dá pra continuar fazendo filosofia profissional se levarmos a sério os devaneios desvairados do Heidegger tardio, ou é mesmo o fim da filosofia e a época de novas tarefas para o pensamento? O truque genial, que não deixa de ser um truque por ser genial, permite que se responda que dá, desde que não se acredite muito nisso. Dá, desde que não se presuma, digamos assim, que essa fenomenologia difusa, transformada em sinônimo da própria possibilidade do pensamento, terá seu próprio “paradigma”, como tiveram o platonismo, o cartesianismo e de certo modo o marxismo. Levando a sério o que disseram Heidegger em 1962, um desconhecido francês em 1972 e um desconhecido norte-americano em 1979, a única possibilidade do pensamento é uma forma de combate, em um sentido muito especial do termo. Um combate silencioso, quase secreto, por possibilidades esquecidas, por atitudes depreciadas, por atmosferas que, como o rock, já não fazem parte do repertório do gosto comum. Sem muito público para explorações dessas coisas, praticantes de fenomenologia parecem viver a condenação de ter de fazer fenomenologia para outras pessoas que também fazem fenomenologia. Quando em público, fenomenólogos e fenomenólogas tendem a perceber, eventualmente de modo muito rápido, que aquilo que fazem não só exige ouvidos cheios de boa vontade como também não é lá algo que, sem muitos ajustes que a descaracterizem, se preste a ser dançado. Mesmo assim, para este que voz escreve e que permanece sendo um usuário do last.fm, parece que dá pra lidar com os livros do mesmo jeito que se lida com os discos: assim como não deixamos de ouvir as músicas que amamos porque elas saíram de moda, acho que o mesmo vale para os livros de filosofia — que, como disse um filósofo contemporâneo que muito amava Platão e Aristóteles, “estão todos abertos ao mesmo tempo”.