A filosofia a partir (da história) de seus problemas
Algumas notas sobre uma história dos problemas da história dos problemas
O Pedro ofereceu, lá na rede da saúde mental, esse take aqui sobre uma coisa que muito me interessa:
"Insistir no dilema história vs. problemas [em filosofia] apenas denuncia o desconhecimento da literatura do campo por parte do insistente. Um 'autor' é a concentração de um panorama de questões, um ponto a partir do qual problemas filosóficos podem ser colocados de maneiras distintas. Se alguém opta por reconstruir uma determinada paisagem histórica, provavelmente tem um bom motivo. Por exemplo, é evidente que as discussões em 'metafilosofia' eram muito mais profundas na segunda metade do século XIX e início do século XX do que aquelas que estão na moda. Claro, profundidade e rigor são valores distintos. Por motivos provavelmente extra-filosóficos, há uma valorização corrente maior sobre o rigor. Mas a recuperação de um cenário esquecido permite intuições e modos de dispor problemas por vezes mais complexos e interessantes."
Para as pouquinhas pessoas que não são da área estrita da filosofia e estão inscritas nesse espacinho aqui, vou tentar desenhar o sobre o que é isso e as razões pelas quais não está tudo bem. Grosso modo, bem grosso mesmo, se você pesquisa filosofia você tende a preferir enquadrar suas pesquisas em termos “históricos” ou “por problemas”, com a disjunção exclusiva operando intensamente na maior parte das vezes. A abordagem da filosofia a partir de seus problemas é a abordagem hegemônica na filosofia profissional, especialmente em se considerando que a filosofia profissional é feita em língua inglesa ("a língua da filosofia é o inglês", disse um professor que tive na graduação, com acentuado sotaque alemão, admoestando umas duas dúzias de alunos que não queriam ou não conseguiam ler textos em inglês em uma cidade do interior gaúcho). Digo que ela é hegemônica não porque ela seja produzida em maior quantidade ou qualidade, mas por uma razão muito simples: ela é mais séria, enquanto modo profissional de fazer a coisa, do que a abordagem histórica. E por séria quero dizer apenas que ela é frequentemente praticada por pessoas que tem uma imagem muito séria da própria prática de pesquisa e que reivindicam que seu fazer filosófico profissional seja visto como sério e levado a sério. Mais ou menos como se qualquer outro modo de fazer filosofia não fosse exatamente sério, mas algo da ordem da brincadeira, do capricho e, no limite, do desperdício do dinheiro público (lembro de um caso em que ouvi um colega falando sério que a filosofia profissional deveria ser redesenhada, que devia ser pensada em um modelo como o da Singularity University, baseada em resoluções de problemas e, assim, quem sabe, mais impacto social...).
Se minha caracterização do que é a filosofia a partir de seus problemas pareceu aqui mezzo pejorativa, espero que a caracterização da perspectiva "histórica" não deixe a desejar nesse aspecto. Em primeiro lugar, porque com o privilégio de viver ao lado de uma historiadora, posso dizer com tranquilidade que o que profissionais em filosofia tendem a chamar de história ou historiografia da filosofia só pode ser chamado assim em um sentido muito, muito especial do termo. Convido quem quer que tenha feito disciplinas de "história da filosofia" - antiga, medieval, moderna e contemporânea - a me oferecer uma perspectiva diferente da que tenho a oferecer, a saber, a de que as disciplinas de história da filosofia não são “de história” quase que em nenhum sentido. Não são histórias sociais da filosofia pois não mostram o pensamento em relação com a materialidade das sociedades. Não são histórias intelectuais da filosofia porque não falam de circulação de ideias ou instituições (os filósofos parecem influenciar uns aos outros por irradiação, como se as ideias flutuassem pelo ar depois de emanar de um pensador qualquer). Não são nem mesmo histórias filosóficas da filosofia, já que são frequentemente lecionadas durante vários anos por docentes distintos, frequentemente (na melhor das hipóteses) especializados no comentário em alguma(s) parte(s) de algum(ns) texto(s) de um ou dois autores quaisquer de um período específico. Os anos de graduação em filosofia são marcados por histórias da filosofia que são, na prática, uma sequência - ou empilhamento - pouco histórico de textos que serão lidos, examinados e comentados nas provas. Os melhores livros de "história da filosofia" são frequentemente livros de história ruins, frequentemente marcados por capítulos intitulados com o nome de alguma pessoa ou de algum movimento, comentários esparsos sobre o período e alguma seção sobre "vida e obra" que funciona como uma espécie de pagamento de pedágio por meio do qual a mera leitura e exame dos textos e ideias dos filósofos poderá ser considerada “histórica” pelo simples fato de ter pertencido ao período em questão. Se isso não parece bom, observo que pode ficar pior: para quem acha que a filosofia profissional só existe desde seus problemas, um paper que se constitua como um mero comentário sobre textos de, por exemplo, Heidegger ou de Wittgenstein - pensadores cujas grandes obras já distam de nós mais ou menos um século - se transformam automaticamente em história da filosofia, nesse especialíssimo sentido do termo, já que não são filosofia propriamente dita, em contato - ou em perseguição mimética, como mais frequentemente parece ser o caso - com “o que de melhor se produz atualmente”, especialmente em língua inglesa, com o sotaque que for.
Permitindo a mim mesmo a liberdade (da violência) hermenêutica do que foi proposto no take do amigo, repito o que ele diz quando diz que “um ‘autor’ é a concentração de um panorama de questões, um ponto a partir do qual problemas filosóficos podem ser colocados de maneiras distintas” e acrescento que um autor é mais ou menos isso mesmo que não se reconheça dessa forma. É perfeitamente possível - mesmo que aparentemente não seja necessário - perceber e sustentar que a filosofia é a dinâmica histórica de seus próprios problemas, dinâmica histórica que pode e talvez devesse ser mais elucidada em seus componentes sociais, intelectuais e mesmo filosóficos, por meio dos quais talvez fosse possível ver que os modos atuais do filosofar profissional não são os únicos. Como observa Hannah Arendt na introdução de A vida do espírito, a “enorme expansão de nossa consciência histórica” tornou impossível “tratar cada assunto ‘como se ninguém o tivesse abordado antes de mim’”, tal qual Descartes. Esse tipo de exercício deixou de ser convincente e, como outros modos de fazer filosofia - a metafísica especulativa, por exemplo, que foi por muito tempo qualquer coisa como o espelho da Criação ou a tela de projeção do filme da História - “perdeu a razoabilidade”. Um pouco mais de caridade com o pressuposto histórico da dinâmica das ideias ajudaria a notar, por exemplo, que há sempre uma espécie de mínimo histórico suficiente mesmo na elaboração dos mais simplórios projetos de pesquisa nas faculdades, nos quais a própria montagem do tema a ser debatido presume um recenseamento - ou seja, uma pequena história - do próprio debate. Penso, contudo, que esse mínimo histórico suficiente termina eventualmente sendo demasiadamente pobre, muito pequeno, quase sempre pouco autoconsciente (quase sempre reprimido), até cronologicamente estreito demais. Penso que por razões de princípios e de uma estilística minimalista - princípios e estilística eventualmente até orgulhosamente confessadas -, ela termina sendo histórica (porque não teria como não ser histórica em nenhum sentido) de uma maneira muito específica porque muito ruim, de uma maneira parecida com a que rege a produção e o lançamento de novos smartphones, por exemplo. Nesse sentido, um livro de 1960 termina parecendo qualquer coisa como um telefone tijolão, do qual lembramos com carinho, mas que pouco ou nada poderia - ou deveria - inspirar o design dos projetos de pesquisa sérios. Junto com isso paira uma atmosfera na qual parece desejável que os projetos de pesquisa sempre estejam alinhados com os temas e estilos da moda, de modo que parece ser raro e exepcional o caso em que um estudante qualquer, imbuído de um interesse genuíno, seja encorajado a pinçar um tema démodé e reabrí-lo - exceto, claro, se ele quiser se transformar em historiador por decreto, historiador em um sentido que só pode funcionar em um ambiente conversacional no qual esse termo circule com sentido especialmente pejorativo. O resultado prático é que da linha de montagem de filósofos profissionais terminam saindo dois tipos de profissionais: os sérios pesquisadores de temas sérios, reivindicando a seriedade das próprias pesquisas e se colocando como modelos exemplares do que a disciplina deve ser e os “historiadores” - não por convicção nem por formação, mas por, digamos, decreto ou maioria de votos - cuja pesquisa é toda fulanizada e, nas mesas de bar, sempre meio difícil de apresentar socialmente de modo razoavelmente justificado, já que pessoa termina sendo lembrada por designadores do tipo “é aquela que veio de Uberaba e estuda Merleau-Ponty”, com todo o abismo de risíveis mistérios que se abre em uma frase como essa.
A continuação da minha apropriação (violentamente) interpretativa do que foi colocado pelo amigo passaria pelo comentário do que entendo quando ele diz que "profundidade e rigor são valores distintos" e que "por motivos provavelmente extra-filosóficos, há uma valorização corrente maior sobre o rigor". Esse comentário, todavia, teria de passar por observações mais sociológicas e mais históricas do que eu poderia oferecer - ao menos do que eu poderia oferecer seriamente, já que, como eu mesmo disse, não me acho lá muito bem treinado a pensar historicamente e, de todo modo, pelos diplomas que obtive, nem é isso que de mim se esperaria que fosse bem feito ou mesmo feito.
Buenas y me espalho.