A dificuldade do acompanhamento
Uma digressão de um guardador de futuros passados sobre a ontologia negativa do passado
I
Lembro com frequência da conclusão de uma aula que tive no mestrado. Uma aula impressionante de um professor impressionante cujas aulas eram, via de regra, sempre impressionantes[1]. O tema era a “ontologia da vida” proposta por Heidegger. Por “vida” o autor designa os entes vivos, isto é, o que costumamos chamar de animais e plantas. Nesse contexto, “vida” difere de “existência”, na medida em que este último conceito designaria estritamente os seres humanos. Diferentemente de Aristóteles, que constituiu a taxionomia da grande cadeia dos entes por meio de acréscimos de qualidades de grau em grau, Heidegger traça uma diferença diferente daquela traçada por Descartes, que separava a realidade em duas metades, uma material e uma espiritual. A diferença, para Heidegger, se estabelece no domínio da compreensão que subjaz aos comportamentos intencionais. Há uma diferença radical entre os existentes humanos e as coisas, isto é, os minerais e os utensílios materiais, já que estes não formam mundo como os existentes nem constituem o mundo pobre da vida. Todavia, com relação aos entes vivos, os existentes humanos são diferentemente diferentes: acaso não é possível presumir algum complexo comportamento intencional em girassóis ou lagartos? A perspectiva heideggeriana é, nesse sentido, mais rica que a perspectiva cartesiana na qual o que não é mente é coisa. Bichos e plantas não são coisas. Todavia, também não são gentes. Não obstante, possuem comportamentos intencionais que não se tornam compreensíveis por mera exclusão de capacidades ou faculdades que seriam próprias aos seres humanos. Compreender apropriadamente o que faz um lagarto quando lagarteia[2] sobre a pedra quente passa, se bem lembro, pela “dificuldade de acompanhamento”: é difícil, caso seja possível, acompanhar de modo completo o lagartear do lagarto sem, digamos, objetificá-lo enquanto coisa biológica. A especificidade da intencionalidade do lagartear aponta para um abismo hermenêutico: como compreender adequadamente o comportamento do lagarto? A aula impressionante teve um desfecho ainda mais impressionante quando o professor sugeriu que no caso da existência humana, em razão do alto grau de complexidade de cada existente, talvez se colocasse uma dificuldade de acompanhamento análoga àquela que se coloca diante da compreensão dos tipos de entes vivos. Por mais universais que sejam as categorias linguísticas e por mais que tendam a permitir e mesmo encorajar a tipificação dos existentes humanos, cada montagem e configuração de um Dasein singular faz com que a tarefa de acompanhar adequadamente os comportamentos intencionais do outro seja uma tarefa digna de um Hércules ou, talvez, de um Sísifo.
II
Na segunda semana de setembro de 2022, abri um edital de concurso. O primeiro ponto dos conteúdos programáticos era “histórias das filosofias: histórias das filosofias ocidentais; histórias de(s)coloniais das filosofias”. Lembrei de um livro de um autor chamado Niklas Olsen, sobre o pensamento de Koselleck. Seu título é History in the plural. Segundo o autor, uma das consequências que se depreende da teoria da história do historiador alemão é que somos, por ele, desencorajados a pensar em termos de História, de Geschichte, daquilo que o romancista Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser, chama de Grande Marcha. A História como processo – isto é, encadeamento causal e tribunal do mundo – é uma invenção iluminista, um tipo de filosofia da história que tenta realizar o que profetiza ao profetizar. É o enredo de Crítica e crise: para desautorizar o poder absolutista das monarquias, os críticos – isto é, os filósofos – criam um clima de opinião no qual o poder, em quaisquer formas, é um arcaísmo caduco como as superstições religiosas. “Os filósofos iluministas reduzem o monarca à condição de homem e, como homem, ele só pode ser um usurpador”[3], diz Koselleck. Julgando o âmbito da política desde uma perspectiva moral esclarecida, os iluministas, segundo Koselleck, criaram um clima de opinião pública no qual mais e mais as monarquias absolutistas pareciam dever sucumbir como formas caducas de organização social, cedendo seu lugar ao governo esclarecido. Nessa perspectiva, para Koselleck, “o verdadeiro usurpador não era o rei, mas o crítico”, conforme dirá na mesma página, em um tom claramente polêmico. O que se seguiu desse clima de opinião é bem conhecido: a revolução que fez Hegel, Schelling e Hölderlin beber vinho e dançar, no seminário de Tübingen, ao receber as notícias da França. Começava a história autoconsciente de si mesma que, segundo a provocação de um historiador como François Hartog, duraria "mais ou menos exatos" duzentos anos, entre 1789 e 1989[4]. A provocação de Hartog é feita sob a inspiração da teoria da história de Koselleck: o que se passou no final do século XVIII desnudou os transcendentais da condição histórica dos indivíduos[5], grupos e povos, a saber, o horizonte das expectativas e o espaço das experiências. O começo da História foi a ampliação acelerada do horizonte das expectativas de melhoramento, em nível planetário, da humanidade. A contraparte disso foi a crescente desfamiliarização com o passado e com as tradições, o crescente estranhamento com um passado cada vez mais caduco e anacrônico, como se tudo o que se passara com a humanidade até mais ou menos 1750, 1780, fosse, a rigor, uma espécie de pré-história ingênua da História propriamente dita, da História autoconsciente de sua condição histórica. Se em 1528 o duque Guilherme IV da Baviera encontrava inspiração e identificação no quadro Batalha de Alexandre, de Albrecht Altdorfer (batalha ocorrida em 333 a.C.), Friedrich Schlegel – nascido em 1772, falecido em 1829 – já olha para o mesmo quadro como uma velha homenagem ao antiquíssimo evento. “Nos trezentos anos que o separam de Altdorfer, transcorreu para Schlegel mais tempo, de toda maneira um tempo de natureza diferente daquele que transcorrera para Altdorfer”[6], diz Koselleck. 300 anos cronológicos foram, na atmosfera da Geschichte, mais tempo do que 1800 anos cronológicos fora dela. Coordenando do alto a pluralidade de histórias, a Grande Marcha da Geschichte preconizada pelos iluministas europeus estabeleceu uma nova e distinta métrica do tempo. Uma métrica constituída por uma temporalidade essencialmente histórica de uma História universal, global, planetária, absoluta.
III
A hermenêutica da consciência histórica apresentada por Ricoeur em Tempo e narrativa é uma tentativa de, por meio do auxílio da teoria da história de Koselleck, renunciar a Hegel, à filosofia da história, àquilo que, para falar com Hartog, se chamou e se chama de regime moderno de historicidade, em toda sua tirania do futuro. Se Koselleck sugere que o verdadeiro usurpador era o crítico e não o rei, Ricoeur não é muito menos receoso dos valores modernos e nos convida ao paradoxal exercício de concepção de utopias exequíveis, diferentes daquelas em nomes das quais o horror foi justificado como astúcia da Razão. Ricoeur agarra com as duas mãos a noção koselleckiana de horizontes de expectativa e sugere que é no interior dessa economia de expectativas que se torna praticável a ideia que Marx enuncia ao dizer que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem”, que “não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Para explicar o que é essa transmissão do passado, constituinte daquilo que Koselleck chamou de “espaço de experiência”, Ricoeur recorre ao pensamento de Gadamer e sua noção de Wirkungsgeschichte, palavra alemã frequentemente traduzido para o português como “história efeitual”. Encurtando a conversa, se trata do passado vivo que nos impregna, que nos incorpora, que nos possui, que constitui a forma e a matéria das circunstâncias nas quais somos lançados e em que temos que nos transformar em personagens de uma história em andamento. Nesse ponto específico, Ricoeur também recupera, várias vezes, a questão da realidade do passado histórico, explorada muitas páginas antes. É no Sofista de Platão que Ricoeur vai colher as categorias sobre o que pode ser o passado histórico e sua representação, a saber, as categorias de Mesmo, de Outro e de Análogo. Grosso modo, 1) ou o conhecimento histórico representa o passado muito adequadamente, de forma quase idêntica ao que se passou; 2) ou a narrativa histórica é radicalmente diferente do evento narrado – posição chamada por Ricoeur de ontologia negativa da história e que extrapolo aqui chamando de ontologia negativa do passado em geral – ou, 3) há uma relação analógica e sofisticada entre o passado e sua representação. Por minha própria formação pessoal, impregnada pelo existencialismo de Sartre e pela náusea de Antoine Roquentin, me chama atenção, de forma muito especial, a ontologia negativa do passado.
IV
Em O inventário das diferenças, Paul Veyne faz uma provocação que Ricoeur se sente impelido a examinar: há uma alteridade tão radical entre nós (“nós quem?”, poderia se perguntar alguém aqui) e os nhambiquaras quanto entre nós e os romanos da Antiguidade. Tem qualquer coisa de alienígena, de completamente estranho, estrangeiro, infamiliar em indivíduos, grupos e povos do passado. Daí a dificuldade de representação, narração e conhecimento do passado: os estratos de diferença são tantos e de naturezas tão distintas que qualquer elaboração discursiva sobre esses passados longínquos parece escorregar por uma ladeira na qual fatalmente cairá em um lamaçal de ficção. Para Veyne, segundo Ricoeur, parece haver o que chamei, no começo desse texto, de grande “dificuldade de acompanhamento” dos comportamentos intencionais dos personagens do passado histórico longínquo, uma dificuldade apenas análoga àquela que se dá quando “nós” encontramos nhambiquaras. O passado é um Outro do presente assim como o estranho e o estrangeiro são Outros diante de “nós”.
É curioso: quando se pensa na relação de Plotino com Platão, por exemplo, separados por centenas de anos (Platão nasceu em 128 a.C., Plotino em 203/204 d.C.), as coisas parecem contemporâneas como eram para o duque Guilherme IV da Baviera com relação a Alexandre. 300 ou 1800 anos de distância parecem um piscar de olhos e as narrativas que nos chegam fazem parecer que a história, até então considerada magistra vitæ, era qualquer coisa como um baralho de tarô aberto sobre a mesa, todo inteiro contemporâneo e disponível enquanto expediente de inspiração, de conhecimento de um futuro no qual, a rigor, nunca há nada de novo sob o sol. O legado de Platão ou de Alexandre parecia perfeitamente passível de reivindicação e a montanha de tempo cronológico separando os personagens históricos parecia absolutamente transponível, nada intimidatória. Essa força do passado exemplar é lembrada por Koselleck[7] em uma anedota real: em 1811 (ou seja, na Europa pós-revolução, em plena Era Napoleônica), um secretário de um ministro evitou que esse ministro imprimisse mais papel-moeda lembrando o ministro do quão trágico, como bem lembrava Tucídides, havia sido a impressão indiscriminada do papel-moeda para os gregos. Diante da autoridade de Tucídides, o ministro foi demovido da decisão sem nem remotamente desconfiar que os gregos jamais conheceram o papel-moeda. A força silenciosa do passado talvez tenha evitado, per se, um desastre financeiro. Com isso em mente, é difícil fugir à questão: desde quando nossa compreensão é convidada a olhar com tão radical estranhamento para os romanos, os nhambiquaras e, no limite, para os outros concretos, eventualmente tão próximos mas aparentemente tão distantes, tão suficientemente distantes para que um Sartre e um Lacan tenham dito, com Rimbaud, que mesmo o eu é um outro? Como se tornou mesmo possível um livro intitulado O si-mesmo como um outro?[8]
V
Há uma clara tensão, no pensamento de Ricoeur, entre a ideia de um si-mesmo como um outro e a ideia de unidade narrativa de uma vida, proposto por Alasdair MacIntyre e parcialmente assumida pelo hermeneuta francês. Mais ou menos como a ideia de “uma história e uma humanidade” é reivindicada em Tempo e narrativa como ideia diretora de tipo kantiano – já que sem ela, para Ricoeur, estaríamos flertando perigosamente com a ideia de pluralidade de raças humanas[9] –, a ideia de unidade da vida parece uma maneira de evitar que, de tempos em tempos, estejamos todos, diante de nós mesmos, como Paul Veyne diante dos romanos e dos nhambiquaras. Todavia, como o próprio Ricoeur deixa bastante claro, a identidade narrativa de uma pessoa é uma identidade de um tipo tal que ela não tem como cessar de se refazer e se desfazer. De tempos em tempos, portanto, folhearemos nossos álbuns de fotografias, releremos nossos diários, cartas, textos em redes sociais e poderemos ter a sensação de que estamos diante de um romano antigo ou de um nhambiquara. Quanto mais dispersa for a errância pelo tempo existencial, maior é a chance de perdermos a familiaridade e a identificação com o que fomos. A experiência viva da identidade narrativa, parece, passa pela manutenção ativa e consciente de um sentimento de enredo[10] por meio do qual a narrativa de uma existência será a narrativa de uma existência existida como narrativa. Se Caeiro nos propôs a imagem do guardador de rebanhos, Ricoeur parece sugerir que devemos ser como pastores de expectativas e experiências, de sonhos e de lembranças, de memórias e de esperanças. A distentio da alma, da qual falava o Santo Agostinho que tanto inspirou Ricoeur, parece ser não só o centro da questão como também o lugar da tarefa de manutenção de si, da palavra dada, do sonho sonhado, do propósito de uma vida por meio do qual, de modo aristotélico, se pode dizer, no fim da vida de alguém, que essa pessoa foi feliz.
Todavia, é realmente um problema que, de tempos em tempos, estejamos como Paul Veyne diante do passado? É realmente um problema olhar para trás e constatar uma descontinuidade, uma incompreensão, um estranhamento? É realmente ruim que não sejamos sempre capazes de explicar tudo, de narrar tudo, de costurar todos os pedaços desse mosaico de lembranças com as quais nos identificamos? É realmente um problema que que olhemos para Platão e Alexandre com estranhamento? É realmente um problema que olhemos para trás e aquela mesma pessoa, com os mesmos RG, CPF, certidão de nascimento, com as mesmas roupas e livros antigos, nos pareça um estranho?
VI
Sobre a continuidade e a descontinuidade da vida, Milan Kundera tem duas ou três ideias que, na falta de uma sistematização filosófica, formam uma bela constelação por, digamos, afinidades eletivas. A primeira é sobre uma certa média de oitenta anos que, como um limite antropológico, define o horizonte meramente cronológico das possibilidades humanas. Qualquer ser humano que vivesse 160 anos seria, segundo ele, outra raça[11]. A segunda ideia é a de que uma pessoa é um trajeto, um percurso, um caminho sinuoso, pouco ou nada linear. A falta de linearidade interdita, de saída, a ideia de acumulação ou melhoramento da compreensão da existência. O romancista chega a sugerir que as fases de uma vida se relacionam de forma irônica: quantas pessoas não se tornam, muito frequentemente, aquilo que mais detestavam, que juraram combater?[12] A terceira ideia de Kundera é sobre a incomunicabilidade entre fases distintas da vida. Uma criança e um adolescente não se comunicam verdadeiramente, assim como um jovem adulto não compreende e não é compreendido por uma pessoa de sessenta anos. A “dificuldade de acompanhamento” tem limites etários rígidos e as fases da vida são separadas por grossas cortinas, impedindo que se vislumbre qualquer coisa mais nítida que um vulto em movimentos quase incompreensíveis, difíceis de descrever e explicar[13]. Sumarizando as três ideias, fica bastante claro que um jovem promissor pode se transformar em um velho idiota e um velho sábio pode ter sido um jovem idiota. O mesmo romancista sugere, no começo de seu mais bonito romance, que é só em certas circunstâncias, quando somos direta e rigorosamente instados a isso, que lembramos da idade que temos. O problema é que a reflexão sobre si próprio não opera no vazio, mas vestida e encarnada com as imagens e símbolos não só do lugar geográfico e da época histórica em que se vive (e da classe, da raça, do gênero, etc), mas também da etapa da vida em que se está. Se Ricoeur nos sugere que é preciso cuidar da unidade da vida é precisamente porque a cada nova etapa, a cada nova fase, a cada novo “ciclo”, somos levados a editar todo o passado, tratando os dias de outrora como se fossem uma fase, uma mera etapa, um meio, talvez até um obstáculo de no caminho da formação de um alguém que, agora distraído, esquecido, talvez seja e esteja até ingrato com tudo que outro alguém teve de fazer para que a versão mais recente pudesse gozar de ser quem é. A errância dispersa é um caminho para a amnésia com suas edições injustas, para o esquecimento dos nossos futuros passados.
VII
Teóricos da história como Koselleck e Hartog (não só eles, claro) perceberam que “nosso” tempo vive em uma confusão entre eventos históricos e notícias. A transmissão em “tempo real” eventos de repercussão nacional e planetária sincroniza a atenção e planifica a opinião de povos inteiros. Somando isso com a sincronização do trabalho e do consumo nas economias liberais obtemos a visão de mundo capitalista como o próprio default setup do modo humano de viver, o realismo capitalista do qual falou Mark Fisher. Não obstante, às vezes, parece que algo de incontornavelmente humano tenta reagir aos imperativos de sincronização e planificação da atenção, da expectativa e da experiência. Para falar disso, serei imperdoavelmente obsceno, porque autobiográfico.
Na minha juventude, a internet permitia o contato com a cultura alternativa frequentemente inexistente nos contextos do convívio presencial no mundo real. Ao passo de um clique encontrávamos livros, músicas e (depois, com o desenvolvimento tecnológico) filmes totalmente diferentes daqueles que apareciam na mídia e, por meio dela, na conversa com os amigos de escola. Quem tinha, como eu, um gosto pelo obscuro, encontrava sites como o Carcasse – e, por meio dele, o Sépia Zine – e descobria livros como O vampiro, de John William Polidori e a música do pós-punk paulistano, como a obra da banda Violeta de Outono. Se essa minha experiência era desconhecida de meus colegas de escola, ele era vivo e permanentemente reaberto em conversas do ICQ com outros adolescentes ao redor do país e do mundo. Uma vez mais, o tempo cronológico era transposto pelo reavivamento do passado no presente: livros, músicas e filmes de de 15 ou de 150 anos atrás estavam ali, presentes, como a batalha de Alexandre, a filosofia de Platão ou os supostos ensinamentos de Tucídides sobre o papel-moeda. A distância cronológica não significava nada. Ou melhor, quase nada: diante da aparente autenticidade dessas relíquias de outrora, tudo o que de meio fake nos cercava – da música do Linkin Park aos filmes de super-herói, que começavam a aparecer naquela época – enchia os corações de jovens de 14, 15, 16 anos de uma suave nostalgia de um tempo em que, aparentemente, nem tudo era tão falso, nem todo mundo era tão impostor. Que triste era o nosso destino de ter de viver em um fake plastic world, pensávamos, no ICQ, na aurora de nossas vidas.
Esse sentimento de contemporaneidade com as preciosidades de outrora me acompanhou pela vida toda. Não só os livros, músicas e filmes pareciam promessas de um mundo em que estaríamos em casa (quem imaginaria, por exemplo, que os Los Hermanos encerrariam suas atividades em 2005? quem, desde aquela época, não tem a discreta impressão de que tudo se passa como se eles fossem voltar, que o fim da banda foi um recesso e não a interrupção de uma presença que se insinuava como perene no futuro de nosso passado? quem não tem a impressão de que eles prometiam mais, que esse mais, prometido, ainda clama por ser cumprido?). Notei que eu me apegava a memórias de episódios, de diversas naturezas, das quais as outras pessoas se esqueciam quase completamente. Como uma espécie de Funes inoportuno, eu tentava reintegrar esses episódios em capítulos de uma história comum, ora averiguando se e ora sugerindo que aquelas situações tiveram, sim, consequências de longo prazo que, por mais insuspeitas que fossem, se faziam notar por toda parte. Eu tentava mostrar “causalidade” onde ninguém mais via e, assim, talvez, estivesse criando continuidade onde ela não existia. Fosse qual fosse a natureza de um acontecimento pontual, sempre tive a impressão de que a distância cronológica ou o esquecimento dos envolvidos jamais foi um legítimo entrave ao potencial inesgotável dos episódios em produzir efeitos aparentemente muito distantes, em termos cronológicos, do agora de todos os dias. Admito: tenho certa antipatia pelas novidades e pelos noticiários. Porém, essa antipatia está lastreada numa impressão muito forte e que tenho há muito tempo, a saber, a de que o passado cronologicamente distante ainda é e é sempre muito contemporâneo e ativo no presente vivo.
Admito: sou um guardador de rebanhos. O meu rebanho são os futuros passados.
VIII
Em outubro de 2010, na época em que me inteirava da ideia heideggeriana sobre as dificuldades dos acompanhamentos, o professor da disciplina sobre Heidegger me apresentou um livro sobre Heidegger e Sartre. Trata-se do Heidegger and Sartre, de Joseph Fell, do qual tanto falo por aqui. Na época, ainda no mestrado, iniciei a leitura predatória do livro, isto é, aquela leitura baseada na mera busca de passagens boas de citar em textos acadêmicos. Esse comportamento com esse livro durou mais ou menos dez anos, até que o li completamente em 2020, durante a pandemia. Depois da primeira leitura, continuei predando o livro até que o reli completamente., mais de uma vez. Hoje, mais de doze anos depois de conhecê-lo, posso dizer que esse é um dos meus livros preferidos. Também não posso deixar de dizer que esse livro é precisamente uma dessas preciosidades de outrora, aparentemente esquecidas, que não parece ter produzido as consequências que poderia ter produzido na pesquisa sobre esses dois filósofos. Digo mais: é algo que me impressiona e me faz sentir meio sozinho que esse livro, de 1979, seja tão subestimado e frequentemente preterido a outros, mais recentes, de autores mais prestigiados e que, sinceramente, não são tão bons. Especificamente sobre Heidegger e Sartre, salvo melhor juízo, não há nenhum outro estudo tão exaustivo e denso quanto o livro de Fell.
A tese do livro é especulativa e abstrata como só podem ser as teses de filósofos e profissionais de filosofia. Fortemente amparado pelas reflexões de Heidegger sobre o niilismo, Fell sugere que a divisão do mundo em sujeitos e objetos é a essência do niilismo. Essa divisão – praticada por Sartre em O ser e o nada – estaria em germe já em Ser e tempo, de Heidegger, e a constatação dessa possibilidade (a própria obra de Sartre teria sido um fortíssimo indício dessa possibilidade) teria levado Heidegger aos rumos que tomou em sua obra tardia. Um mundo no qual os sujeitos estão completamente cercados de objetos, de coisas, no qual até mesmo ele próprio e os outros aparecem fatalmente objetificados, não é um mundo habitável em nenhum sentido. O segredo do nosso modo disperso e sonâmbulo de errar pela existência é essa partição do mundo em dois, em um sujeito que cria sentido em arredores de objetos assignificativos, sem sentido intrínseco, em si mesmo mudos, insignificantes e absolutamente dependentes dos investimentos intencionais dos seres humanos que, como ilusionistas entediados bem ou malsucedidos, animam a realidade ao recobri-la com significação. Por meio dos próprios propósitos existenciais, os seres humanos recobririam um conjunto justaposto de entes com o artifício de um sistema de coordenadas de significação por meio dos quais o caráter assignificativo dos entes seria, digamos, disfarçado. Uma consequência fatal dessa partição do mundo em dois é, para retomar o tema com o qual comecei esse texto, a radicalidade da dificuldade de acompanhamento, a impossibilidade do acompanhamento do que quer que seja. Os entes se transformam em brinquedos em uma existência transformada em jogo enquanto os outros existentes humanos se revelam, sob a casca de uma objetificação incontornável, mistérios absolutos. Mesmo para si próprio um ser humano se tornaria, nessa perspectiva, incontornavelmente estranho: o que quer que se possa produzir em termos de saber sobre a ipseidade singular ou sobre a condição humana em geral cairá, fatalmente, na ordem do conhecimento objetivante, na ortopedia de uma epistemologia que inelutavelmente distorcerá a realidade humana ao apresentá-la em um modo de ser distinto daquele que é seu próprio modo de ser, a saber, existência. O livro de Fell é, nesse sentido, um convite para uma luta, uma struggle against Vorhandenheit, contra a ontologia da mera subsistência na qual os entes só podem aparecer como objetos dotados de propriedades. Fell entende que há como pensar diferentemente do enquadramento da realidade em sujeito e objeto. É no De anima de Aristóteles que o autor buscará a inspiração desse outro caminho. Na edição em inglês da obra de Aristóteles utilizada por Fell, esse expediente de inspiração aparecerá por meio de uma fórmula precisa: precedent community of nature between factors. É uma tese aristotélica famosa: se o intelecto consegue apreender o ente, há algo de comum entre eles, um vínculo íntimo entre o pensamento, a palavra e a coisa. Se esse vínculo íntimo faz lembrar as ideias de Stanley Cavell quando este se nos pergunta sobre o que aprendemos quando aprendemos uma palavra (aprendemos o significado de uma palavra ou o que é uma coisa? aliás, qual é a diferença?), é em um texto de Heidegger, de 1957, que Fell encontrará a encarnação contemporânea da precedent community of nature aristotélica. Heidegger falará de uma complexa noção de identidade, uma “identidade-e-diferença” que seria nada menos do que a condição própria das diferenças superficiais entre elementos que, para a abstração reflexiva, parecem antagônicos, contraditórios, inconciliáveis. Há, portanto, um vínculo íntimo entre sujeito e objeto, entre palavra e coisa, entre pensar e ser, um vínculo íntimo que permite, condiciona, possibilita a inteligibilidade do diverso aparentemente antagônico. Há um Lugar em que os fatores opostos para o pensamento se revelam apenas superficialmente opostos, já que fincam suas raízes comuns. Esse Lugar é a clareira de compreensão na qual ocorre a maravilha das maravilhas, isto é, o próprio aparecimento dos entes, o próprio acontecimento absoluto do haver entes em vez de nada. Esse Lugar, me parece, faz com que a dificuldade do acompanhamento pareça um pouco menos insuperável.
Em 2016, foi organizado um livro em homenagem ao professor Fell. No título do livro constam as duas palavras com as quais Heidegger and Sartre se encerra: commonplace commitments. Lugares comuns: ao mesmo tempo banais e ordinários mas também partilhados. Esse é o território prévio que o pensamento deve poder, conforme Fell, “reconhecer” e “honrar”[14]. A ambivalência do comum, penso, aponta para a natureza e o lugar daquilo que nos vincula, de forma frágil ou rígida, ao Lugar comum em que, conforme penso, podemos lembrar que estamos. Se Ricoeur fala em reabrir o passado, eu, guardador de rebanhos de futuros passados, penso que algumas palavras de Fell, em seu livro, resumem bem o que se descobre quando se reabre o passado, a saber, que as coisas aparentemente distantes estão frequentemente mais perto do que parecem estar:
“O que você busca está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça aquele lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não reconhecer este lugar. Em outras palavras, é porque originalmente o lugar pareceu distante quando estava perto que alguém, viajando para longe, buscou dele se aproximar.”[15]
IX
Antes de concluir, preciso fazer uma observação. Se estou tentando fazer um elogio da presença do passado no presente é na precisa chave do que Ricoeur chama de reabertura. Reconheço que, com uma frequência mórbida e socialmente venenosa, o passado persiste no presente. Sobre isso, do ponto de vista da história, François Hartog fala como ninguém: quando o horizonte das expectativas é coberto por uma noite escura, o passado vira memória, comemoração, patrimônio e identidade. Quando a experiência deixa de ser histórica, indivíduos e grupos experimentam, de forma dispersa e quase sonâmbula, o alagamento do espaço público por uma forma congelada do passado. Como também observa Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, esse tipo de memória não apenas não é histórica como é inimiga da história. Caprichosa, essa memória resiste à elaboração e só aceita jogar segundo suas próprias regras. É a “temporalidade inédita do imprescritível”, como diz Hartog. Mas, mais do que isso, é o tempo repetitivo do ressentimento. Sobre isso, volto a ser obscenamente biográfico.
Descobri a noção de ressentimento com 20 anos, em 2006, nos livros de Nietzsche. Se os leio hoje, não me reconheço no ontem: lembro da sensação de vitalidade que me invadia desde suas páginas, os “é isso! é isso!” que pensava lendo as passagens de seus livros. Se tento lembrar dos motivos precisos que me levavam a tal entusiasmo, fracasso. Sinto que quase coincido, por um instante, com aquele eu-leitor que, há mais de 15 anos, encontrou tudo o que precisava em suas páginas. Mas o instante desaparece, evanesce, se dissipa como fumaça de cigarro e certo estranhamento torna difícil acompanhar o personagem que aparece nos cinemas da minha memória (lembremos que os cinemas da memória ficam no bairro da imaginação). Mais viva é minha experiência com Ressentimento, livro da psicanalista Maria Rita Kehl, que descobri pouco tempo depois de encontrar o conceito em Nietzsche. Nas páginas desse livro ainda encontro topografada uma das experiências que considero mais perniciosas, mais vis, mais baixas, um dos destinos mais tristes e perigosos para uma alma – e para as almas que lhe estejam próximas. Desejo de não se esquecer, de manter vivo o agravo, de considerar a própria falta como prejuízo causado por alguém, manutenção da posição de vítima que goza com a queixa, o ressentimento tem algo de possessão demoníaca. A força do conceito, em minha juventude, se impôs na mesma e exata medida em que ele me ajudou a perceber as razões por trás de comportamentos nos quais as pessoas se assemelhavam a assombrações, a mortos-vivos com um grau baixíssimo, quase nulo de autoconsciência. A rememoração e a ruminação das mágoas, dos rancores, a permanente culpabilização dos outros, a absoluta incapacidade de assumir ao menos uma parcela da responsabilidade pelo próprio destino (o conceito sartreano de responsabilidade radical me pareceu uma porta de saída natural do paradigma do ressentimento), as perpétuas gravidade e seriedade das próprias picuinhas narcísicas (o elogio do riso feito por Milan Kundera também me pareceu uma saída da atmosfera do ressentimento), o impulso mórbido de fazer da própria miséria um espetáculo público (aprendi, com Kundera, que em tcheco, há uma palavra só para isso: lítost) era uma constelação de elementos que, em conjunto, delimitava a imagem integrada de tudo o que eu mais detestava naqueles dias. Meu horror com o ressentimento atingiu um patamar tão elevado que, como que improvisando uma mística, montei em mim mesmo uma torre de vigilância contra meus próprios ressentimentos: tão logo eu flagrasse o florescimento de uma queixa ou mágoa, tratava de submetê-las ao tribunal da responsabilidade e encaminhá-las para a ressocialização pelo humor. Tive, naturalmente, de aprender a ser paciente com todas as pessoas que, diferentemente de mim, não estavam em uma cruzada contra o ressentimento. Tive, naturalmente, de aprender que pessoas ressentidas continuariam aparecendo em minha vida todos os dias e que, eventualmente, eu não poderia simplesmente evitá-las. Tive, também, de aprender que o ressentimento – ou sua performance – poderia eventualmente se transformar em uma estratégia social e política e que pessoas leves e alegres poderiam, do dia para a noite, encarnar personagens ressentidas e angariar prestígio por meio do espetáculo da queixa. Li, recentemente, um profissional de filosofia defender o valor moral do ressentimento (de modo não surpreendente, é alguém que já vi, em redes sociais, oferecendo o espetáculo da própria miséria). Preciso, portanto, deixar claro, muito claro, o mais claro possível que a presença viva do passado cronologicamente distante da qual estou falando com verdadeiro amor filosófico não é da mesma natureza da mortificação do presente operada pelo ressentimento. Também não é seu oposto, já que não se trata de tentar de vencer a mágoa pelo esquecimento ou pelo perdão – possibilidades muito belas e muito honradas pelo pensamento de Paul Ricoeur. Reabrir o passado é criar no presente vivo, pela via do devaneio permanente, janelas para o passado presente, com os futuros passados que clamam por reavivamento.
X
"Não existe a relação sexual", dizia Jacques Lacan. Todavia, que relação existe? Existe alguma relação? Não é o mesmo Lacan que sugere que, em nosso falar, a função da linguagem não é informar, mas evocar? Evocar, indicar, mostrar, nunca comunicar. A ideia de dificuldade do acompanhamento me fascinou quando jovem e ainda me fascina. Como diz Ricoeur, por mais que a linguagem possa ser analisada e explicada, a comunicação tem qualquer coisa de enigma e milagre. Um milagre raro, vale dizer, conforme Kim Krizan, que assina os roteiros dos dois primeiros filmes da trilogia Before... com Richard Linklater. Um milagre raro, efêmero, frágil, fugidio e que, em certo sentido, é a razão pela qual vivemos. Talvez, como diz em um livro que descobri muito recentemente e que ainda preciso ler, nosso impulso mais básico seja o de evitar a solidão - superar a solidão insuperável - e partilhar a intimidade - partilhar plenamente o insuperavelmente íntimo -, mesmo que seja tão difícil evocar, indicar e mostrar o que se passa conosco, mesmo que seja tão difícil acompanhar lagartos, romanos, nhambiquaras, vizinhos, parentes, amigos, pessoas amadas e, no limite e no fundo, nós mesmos.
[1] Trata-se do professor Róbson Ramos dos Reis.
[2] Trata-se de um artigo do professor Róbson.
[3] KOSELLECK, 1999, p. 106.
[4] A tese é apresentada em seu livro Regimes de historicidade.
[5] Em nome da prosa, cometo uma indelicadeza com Hartog: rigorosamente, segundo o autor, tanto as categorias de Koselleck quanto sua própria categoria – de “regimes de historicidade” – deve ser compreendida em chave heurística, não ontológica ou antropológica. Ao falar em “condição histórica”, estou propositalmente lançando mão do vocabulário de Paul Ricoeur em A história, a memória, o esquecimento.
[6] KOSELLECK, 2006, p. 26, itálico meu.
[7] KOSELLECK, 2006, p. 41.
[8] Tento fazer aqui o mesmo exercício que Gerd Bornheim faz em seu Sartre, metafísica e existencialismo com o título de O ser e o nada, a saber, mostrar como o título de um livro pode ser lido não só como um gesto autoral de quem o escreve mas, muito mais do que isso, um forte indicador do estado da metafísica de uma época.
[9] A ideia é desenvolvida pelo autor nas conclusões de Tempo e narrativa, especificamente no ponto sobre as (im)possibilidades de totalização da história.
[10] A expressão não é de Ricoeur nem minha, mas do professor
. Por sua fina sintonia e compatibilidade com a hermenêutica narrativista de Paul Ricoeur, tenho lançado mão dessa expressão em meus textos recentes, bem como o fiz em minha tese de doutorado.[11] A ideia é apresentada em uma digressão presente no romance A ignorância. Ainda que o tempo cronológico da vida biológica seja diferente do tempo da experiência propriamente humana e do tempo histórico que nos familiariza ou distancia do passado, algumas considerações muito prosaicas de Kundera mostram como o tempo meramente cronológico da vida biológica pode ser constrangedor. Em A arte do romance, Kundera nos fala, por exemplo, do limite antropológico da memória que torna difícil a leitura de um romance imenso como O homem sem qualidades, de Robert Musil. Há uma média rigidamente cronológica de páginas que um ser humano consegue ler por dia, caso disponha de tempo cronológico suficiente.
[12] Essa ideia aparece em Os testamentos traídos, no contexto de uma reflexão sobre os personagens de Guerra e paz, de Tolstói.
[13] Essa ideia aparece em muitos momentos dos romances e ensaios de Kundera. Uma das aparições mais nítidas dessa ideia se dá no contexto de seus comentários sobre o romance O cisne, de Gudbergur Bergson, presentes no livro de ensaios intitulado Um encontro.
[14] FELL, 1979, p. 425.
[15] FELL, 1979, p. 212.
Gosto do conceito/condição de "khôra", talvez seja fonte de possibilidades.