20 anos sem e com Ricoeur
A filosofia enquanto reabertura do passado e paixão pelo possível
Fui voluntariado por alguns queridos amigos ricoeurianos — especialmente o
— a tecer algumas palavras hoje, em razão dos exatos 20 anos da morte de Paul Ricoeur. Pensei: preciso ser breve e, ao mesmo tempo, seria interessante soar criativo. Sim, criativo: Ricoeur não objetaria que um profissional da filosofia pode ser criativo, dado que ele não só lamentava o triste destino da retórica filosófica (relegada ao segundo plano, eventualmente considerada uma espécie de pecado capital na escrita de textos filosóficos) mas, mais do que isso, ele foi profundamente criativo. “Insólita” e “única”, diz François Hartog, foi a ideia de Ricoeur de ligar, por exemplo, o Fedro de Platão ao destino da memória humana em sua relação com a escrita da história. Ricoeur parece um romancista quando confessa sua estratégia, em Tempo e narrativa, motivada por pensar que “o encontro entre as Confissões e a Poética, na mente do mesmo leitor, ficaria mais dramático” se “fosse da obra em que predomina a perplexidade provocada pelos paradoxos do tempo” para “aquela em que, ao contrário, prevalece a confiança” na capacidade narrativa em “fazer triunfar a ordem sobre a desordem”. Ricoeur ensina, portanto, entre tantas outras coisas, que um texto de filosofia pode, sim, ter uma estrutura dramática como a de Tempo e narrativa, em cujas páginas finais lemos que “o mistério do tempo não equivale a um interdito que pesa sobre a linguagem” mas, pelo contrário, “suscita, antes, a exigência de pensar mais e de dizer de outra forma”. Criatividade, drama e permanente abertura para novas buscas parecem, pois, traços incontornáveis deste autor que, certa feita — como testemunhou outro amigo, outro —, cheguei a chamar de pós-moderno cristão.Pensei em falar sobre a “hermenêutica da consciência histórica”, proposta que já tem seus 40 anos e que Ricoeur parece ter abandonado, conforme penso, tão logo o topos da História enquanto processo — quase forense, vale dizer, processo que não perdoa ninguém e que permanece vigente naquilo que Hartog chamou de “temporalidade inédita do imprescritível” — perdeu um pouco de sua força de tração e o levou a se preocupar com temas mais cívicos, como os excessos da memória e do esquecimento em um tempo como o presente que nos foi dado, no qual a historicidade tem tão baixa densidade que pareceu mais adequado passar a falar em uma “hermenêutica ontológica da condição histórica”, isto é, de um traço que temos por condição, mesmo que tenhamos perdido a consciência que tínhamos dele. Pensei em falar do seu célebre conceito de identidade narrativa — pelo qual me fascinei nos tempos de graduação, nas aulas daquele que seria meu orientador de doutorado, o professor Noeli Rossatto — e sobre como um certo sentimento de enredo (a expressão é do professor
) poderia ser considerado um descendente legítimo do apelo existencialista por atenção lúcida ao drama do existir. Todavia, já tenho falado muito dessas coisas neste semestre e, nesse sentido, falar disso seria falar de mim e da violência hermenêutica que exerço sobre os textos desse autor que, por sua vez, sabia usar dessa violência suave em seus densos trabalhos que, frequentemente, só parecem plenamente inteligíveis para pessoas que disponham do mesmo repertório imenso de leituras que animava as ricas reflexões que constituem o quadrante final de sua obra.Falar de Ricoeur passaria por algo parecido com o que a Alexandra fez ao notar que Jeanne Marie Gagnebin, há vinte anos, falava da morte do “filósofo cristão” Paul Ricoeur. O que um obituário, uma lápide como essa pretende significar? Se eu dou ouvidos para meu romancista favorito, Milan Kundera, sou obrigado a ver as lápides como a instância do kitsch que constitui a última estação diante do esquecimento. É algo que todos sabemos: os mortos, além de perderem todos os seus direitos (suas vidas serão vasculhadas, eventualmente violadas, narradas de forma que frequentemente jamais receberiam o assentimento dos personagens que as viveram), frequentemente recebem da morte uma aura de santidade. Um morto está redimido de tudo e Ricoeur, professor de Emmanuel Macron, é frequentemente desculpado pelos erros deste célebre político, aparentemente traidor do legado e do testamento filosófico de seu professor. Evidentemente, o obituário escrito por Gagnebin escapa ao kitsch das palavras adocicadas que enfeitam túmulos de pessoas desconhecidas. A morte do célebre filósofo, aliás, não atrapalhou em nada sua presença na cultura: além de ter sido professor de um presidente, Ricoeur inspirou também um Papa — o recentemente falecido Papa Francisco — que, em 24 de maio de 2015 (isto é, quase exatos dez anos depois de sua morte) citou o filósofo francês na encíclica Laudato Si.
Ricoeur, penso, se destaca de um fundo de pensadores do século XX que, por diferentes razões, foram profetas. Quando pensamos em Heidegger, Wittgeinstein ou Sartre, pensamos em autores que escreveram obras pretensiosas e viveram vidas pretensiosas, pensadores que dispunham de um prestígio digno dos popstars da atualidade, que nos convidavam a renunciar às heranças, a viver nas montanhas ou nas ruas, praças e avenidas, a imaginar outros e distintos mundos possíveis no presente que lhes foi dado e que, de certo modo, ainda é o nosso. Ricoeur, por sua vez, foi autor de obras bem mais compatíveis com o estado da arte da filosofia em sua realidade profissionalizada. Por contraste com Ricoeur, esses gigantes do século XX parecem filósofos do XIX, praticantes de um discurso profético e dificilmente repetível em um tempo no qual, como nos mostrou Richard Rorty, a filosofia é apenas mais um discurso a disputar credibilidade na praça pública. O professor Ricoeur, como nós, fez concursos — e perdeu, como no caso em que perdera uma vaga para Foucault — e cumpriu obrigações burocráticas que, em tempos de efervescência cultural, o levaram a ser eventualmente considerado mais amigo da polícia do que dos estudantes, o que pareceu motivar que lhe jogassem um balde de lixo sobre a cabeça. Em seu heroísmo suave, Ricoeur perseverou e permaneceu aberto, indo para onde quer que a boa vontade intelectual considerasse seu pensamento legítimo e interessante. Foi talvez por essa boa vontade intelectual que Ricoeur, entre outras coisas, se consagrou enquanto filósofo de uma época pós-analítica e pós-continental: Ricoeur leu e pensou sobre todo mundo, sobre Husserl, Heidegger e Arendt, mas também sobre Strawson, Anscombe e Davidson; sobre Braudel, White e Koselleck, mas também sobre Woolf, Musil e Proust. Sem pudor, Ricoeur pensou temas contemporâneos com Platão, Aristóteles e Agostinho porque, afinal, “todos os livros estão abertos ao mesmo tempo”, isto é, porque a filosofia não padece, como as bugigangas eletrônicas que usamos, de obsolescência. Falecido há exatos 20 anos, Ricoeur foi alguém que viveu em uma atitude intelectual que o torna, me parece, conspícuo pela ausência: presença constante em cursos de filosofia, historiografia, literatura e mesmo teologia, esse filósofo cristão pode — e essa é uma hipótese minha — ter se tornado célebre e incontornável não só pela maestria de suas interpretações dos cânones, mas pelos valores e diretrizes que guiaram essa interpretação: como já ouvi dizer o professor Tomás Moratalla, o pensamento de Ricoeur pode ser considerado uma sorte, isto é, uma graça, um dom, um gesto de amor que complementa as lacunas daquilo que gostamos de pensar que seria a justiça. A radicalidade de sua inteligência jamais o levou para os radicalismos e reducionismos que tomou conta das humanidades nos últimos estertores febris da tradição — isto é, antes que, conforme Hans Ulrich Gumbrecht, o campo das humanidades visse a rapsódia das epistemologias ser interrompida pelo marulho das águas paradas de coisas como os cultural studies anglófonos — e este talvez seja um dos segredos da longevidade e da imperecível pertinência de um pensamento que, década após década, se mostra resistente ao som e à fúria das modas intelectuais que saracoteiam daqui para acolá. É 2025, Ricoeur morreu há vinte anos e ainda parece pertinente, plausível e incontornável pensar sobre o caráter narrativo de nossas vidas, sobre o caráter complexo das políticas de anistia, sobre o amor, o perdão e a aristotélica ideia de uma boa vida que esperam por nossa meditação sempre que o conceito parece encontrar seus limites.
Ok, acabo de costear o alambrado do kitsch ao me permitir, contra minhas próprias tendências, entrar nesse tom quase elegíaco de exortação do pensamento desse homem que perseverou no pensamento mesmo quando sua vida foi atingida por tragédias que teriam liquidado as forças espirituais de muitos de nós. O Pedro Silva e os outros amigos que acharam que eu poderia ter algo a dizer nesse dia de hoje perderam, no exato momento em que acharam que eu poderia ter algo a dizer, o direito de reclamar do que eu diria. Sem pretender ofender a memória de Ricoeur — muito pelo contrário, para honrá-lo com a violência suave da interpretação —, preciso dizer que Ricoeur, às vezes, é amigo demais. Amigo do pensamento, amigo da humanidade: Ricoeur tem medo de — sem deixar de ter reverência por — Musil e Woolf, que testam os limites da expressividade narrativa e, desse modo, testam os limites dos nossos expedientes de reconhecimento do que é e pode continuar sendo uma cultura humana. Talvez Ricoeur confie demais no amor, no perdão e no esquecimento, de um modo que — como observava Beatriz Sarlo, que também nos deixou recentemente — se torna difícil ou ao menos complexo se servir de seu pensamento enquanto expediente de inspiração para as políticas da justa memória que tanto o preocuparam. Talvez Ricoeur seja um humanista daquela tradição esboçada por Peter Sloterdijk em Regras para o parque humano e seja demasiado apegado à cultura escrita, do livro, do texto impresso, o que o leva eventualmente a esquecer o campo prosaico da conversa ordinária. Talvez ele tenha fugido do confronto com Sartre, talvez tenha ignorado injustamente a sociologia de Bourdieu, talvez tenha lhe faltado florestas, praças, ruas e avenidas. Talvez, em um tempo em que Koselleck tentava fugir da opressão forense da Geschichte por meio da ideia de “histórias, no plural” — isto é, no plural e sem maiúscula, sem unidade —, ele tenha arriscado demais ao falar de um tempo, uma história e uma humanidade em tempos nos quais a colonização ainda era, em sua atualidade e em seus vestígios, uma realidade incontornável. Contudo, não se pode lhe tirar o mérito, reconhecido por Hartog, de perceber que o passado pode ser reaberto, que não precisa ser considerado acabado, findo, morto, que pode ser considerado uma espécie de tesouro de possibilidades precisamente naquele sentido em que Gadamer falava que, na hermenêutica filosófica, se trata sempre de deixar algo permanecer incerto, especialmente aquilo que promete algo para depois. É assim que amo Ricoeur, como um pensador imbuído de paixão pelo possível e, como vem dizendo Jean Greisch, de portador daquilo que Kundera chamou de sabedoria da incerteza, do inacabamento — palavra derradeira de seu A memória, a história, o esquecimento, encerrado em versos, em versos! — ao qual, sim, estamos condenados. Condição perpétua, certamente. Mas prisão perpétua? Não: abertura e convite para pensar mais e dizer de outra forma.
Fracassei, penso, em falar de Ricoeur, e terminei falando do meu Ricoeur. Paciência: fusão de horizontes, conforme ensinou Gadamer. O texto é uma partitura que é executada segundo a interpretação do leitor, conforme ensinou Ricoeur, sem iconoclastia incendiária, sem paixão pela polêmica, com a serenidade de alguém que pensou, sem cessar, o presente que lhe foi dado, com tudo o que de ausente — isto é, de futuro, de passado, de possível e imaginável que compõe o presente — e, tão conspícuo pela ausência quanto sua figura, permanece enquanto acompanhamento invisível de nossa prosaica tarefa de pensar a vida.
Gosto de imaginar Sísifo e Ricoeur felizes.
Sim, podemos imaginar sísifo feliz.
Excelente! Que privilégio poder ler você. Obrigado, meu amigo.